A revolta da vacina de Bolsonaro
Até o início do século XX, o Rio de Janeiro era assolado por uma profusão de doenças que ceifavam muitas vidas (varíola, febre amarela, peste bubônica, etc). Só a varíola era responsável por quase duas mil internações na então capital da república.
Mesmo assim, as camadas populares rejeitavam, desde meados do século XIX, qualquer tentativa de vacinação em massa e obrigatória, porque a vacina causava estranheza e temor à população. Boatos davam conta que havia riscos de os vacinados ficarem com feições bovinas, porque a fabricação dos imunizantes era feita a partir de pústulas de vacas infectadas com o vírus da varíola.
O médico Oswaldo Cruz convenceu, em junho de 1904, o presidente Rodrigues Alves a enviar ao congresso nacional um projeto de lei para estabelecer como obrigatória a vacinação em todo o país. Somente pessoas que comprovassem ser vacinadas, conforme rezava o projeto, conseguiriam autorização para viajar, para assinar contratos de trabalho, para matricular os filhos nas escolas, para casar, etc.
O debate se estabeleceu na imprensa e no legislativo, com muitos parlamentares se posicionando contrariamente à medida, que terminou aprovada em 31 de outubro e regulamentada pouco mais de uma semana depois, fazendo explodir revolta na cidade do Rio de Janeiro (a lei de vacinação obrigatória fez a insatisfação da população, que estava represada, explodir).
A história se repete como tragédia ou como farsa, disse Karl Marx ao discorrer sobre o quadro revolucionário de meados do século XIX, na França, de Luís Napoleão.
A célebre frase do pensador alemão poderia ser posta numa moldura e serviria como epígrafe para estes tempos de Covid-19 que o mundo e, particularmente, o Brasil enfrenta.
Mais de um século depois, o governo federal entregou sábado (12) ao Supremo Tribunal Federal (STF) um plano de vacinação, sem previsão alguma para o início da imunização, o que fez o tribunal, por meio do ministro Ricardo Lewandowski, determinar, domingo (13), que o ministério da saúde informe, no prazo de 48 horas, a previsão de início e de término da vacinação contra a Covid-19 no Brasil.
Um dos filhos do presidente Jair Bolsonaro chegou a dizer que tomar a vacina ou não é um exercício de liberdade, como se a liberdade fosse anteparo para bizarrices, e comparou a situação atual com a que o Brasil e o Rio de Janeiro, de maneira particular, viveram há 116 anos.
O presidente Bolsonaro e muitos de seus apoiadores seguem a mesma trilha, sem considerar que a comparação de dois contextos diferentes exige muita ponderação, pois no início do século XX a vacina era algo ainda muito novo e, como já dito acima, estranho. Não fazia muito tempo que Louis Pasteur descobrira os microrganismos que causavam doenças. Tudo muito diferente dos dias atuais.
Parece que voltamos mais de um século no tempo, com os papéis inteiramente invertidos.
No passado, o governo federal queria vacinar todos e a população, por ignorância, resistia; hoje, a população aguarda ansiosa pela vacina milagrosa e o governo federal, politizando o tema, busca, de todas as formas, sabotar a campanha de vacinação que, São Paulo à frente, os governadores tentam levar adiante.
A postura de Rodrigues Alves, em 1904, foi inteiramente diferente da de Bolsonaro, trazendo cientistas para comandar as ações. A do atual presidente é pavorosamente refratária aos postulados da ciência. Enquanto Rodrigues Alves apostou na ciência para resolver o problema, Bolsonaro distribui caneladas em cientistas e técnicos, com o intuito de defender os interesses políticos dele.
A oposição ao governo federal atualmente também não é, como a de 1904, um primor em sua atuação.
Se em 1904, os grupos oposicionistas se articularam para enfraquecer o governo e até o ainda novo regime republicano (não esqueçamos que a república tinha apenas 15 anos de vida), alguns setores oposicionistas no Brasil dos dias que seguem trabalham olhando para o calendário eleitoral, sem maiores preocupações com o interesse público. De qualquer forma e a despeito de suas declarações desencontradas e até tresloucadas, o presidente Jair Bolsonaro sancionou projeto de lei que permite a vacinação obrigatória contra a Covid-19.