Contra a liberdade de imprensa
A relação do poder com a imprensa nunca foi, no Brasil, das mais cordatas. Tanto faz de se está aboletado na cadeira de presidente da república alguém de direita ou de esquerda. E para não ir muito longe no tempo citarei, de forma sucinta, como nos oito anos de Fernando Henrique, nos oito de Lula e nestes primeiros meses do governo Bolsonaro as caneladas na mídia foram muitas e grandes.
Logo que assumiu o governo, com vitória insofismável no primeiro turno contra Lula e apesar do clima de consenso que predominou no início do primeiro mandato, o presidente Fernando Henrique Cardoso e sua equipe partiram do pressuposto de que a esquerda em geral e o PT em particular exerciam muita influência nas redações e que, por isso, a relação com repórteres não seria das mais fáceis. Não de todo errados, mas as críticas à gestão FHC eram motivadas por algo muito maior do que a influência petista nos meios de comunicação.
Os atritos com a imprensa começaram cedo, como expõe Fernando Henrique nos seus Diários da Presidência, ao reclamar dos grupos Globo e Folha.
O ex-presidente Lula teve, em alguns momentos e durante boa parte dos seus oito anos de Brasília, relação com a imprensa que ia de tensa à conturbada, passando por momentos de extremismo, o maior quando Lula, depois de acusado, em matéria publicada por Larry Rohter no The New York Times, de beber demasiadamente e, com isso, atrapalhar a condução do país. Segundo o jornalista, havia comentários jocosos nos bastidores e o assunto poderia se tornar preocupação nacional. Lula, de forma atabalhoado, ameaçou-o de expulsão e caso se tornou uma nódoa na biografia do então presidente brasileiro.
Atualmente, o presidente Jair Bolsonaro e sua trupe acusam mídia e oposição de atuarem de forma desleal e antipatriótica, impedindo que o governo atue em benefício da pátria e da nação, seja lá o que isso signifique.
A qualidade da democracia deve ser julgada pelo papel que nela desempenham oposição e imprensa.
Uma frase atribuída a Millôr Fernandes retrata com precisão qual deve ser o papel de uma imprensa verdadeiramente livre. Diz Millôr: “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”, caminho seguindo pelo brilhante jornalista Alberto Dines, falecido em maio de 2018, para quem o papel da imprensa “como instrumento da liberdade de expressão é ser o contrapoder”, pois é por meio dela que se antecipam e se mobilizam corações e mentes, de forma massiva, para denunciar e combater quaisquer manifestações de tirania, autoritarismo e hegemonia que ameacem as liberdades individuais.
O que digo acima não inocenta a imprensa brasileira, como bem diagnosticou o próprio Millôr Fernandes, em 1980. Para ele, a “imprensa brasileira sempre foi canalha”, pois conseguiu evoluir, e bem, do ponto de vista técnico, mas ainda patina “do ponto de vista ético, moral e social”. Ser ruim, porém, não significa ser dispensável, pois não existe governo democrático sem imprensa livre.
A hostilidade à imprensa aproxima dois dos mais destacados líderes dos polos ideológicos opostos, o ex-presidente Lula e o atual presidente Bolsonaro. Ambos não escondem a animosidade contra os meios de comunicação de massa e, por tabela, os laivos autoritários que os dominam.
Estabelecer boa relação com a mídia é crucial para evitar tensões e crises facilmente evitáveis. Isso não significa ser dócil a ela e tampouco torná-la dócil, mas saber que a saúde da democracia passa por uma sociedade bem informada e crítica quanto ao papel desempenhado pelos governantes. Cometer erros tolos de comunicação e de relacionamento com a mídia torna o governo vulnerável.
Há uma lei de ferro na política que não pode e não deve ser esquecida: quem começa forte, poderoso e autoritário tem de se manter forte, poderoso e autoritário sempre. E para isso não pode errar, pois se o fizer denunciará posição de fragilidade e, assim, será bombardeado.
A culpa do bombardeio por vezes está em casa.
Fernando Henrique Cardoso descobriu e disse isso nos dois trabalhos (A arte da política e Diários da Presidência) que escreveu no período pós-presidência; Lula descobriu, mas ainda não teve a grandeza de mostrar; Bolsonaro, por ora, ainda tropeça na própria língua.