Autocomiseração (Epístola para os que não vão ler)

por Sérgio Trindade foi publicado em 04.set.21

O texto abaixo é do colega e amigo Luiz Roberto, professor de Filosofia do IFRN – campus Natal Zona Norte

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Querido Diário,

Hoje, deu-me uma vontade danada de fazer confissões sobre a estupenda profissão a qual me dedico. Contudo, não quero falar de mim, daquilo que faço, ou o que deixo de fazer… Sou “desimportante” e “inexpressivo” demais para perder tempo comigo. Também não quero falar de um colega em específico. Quero falar da docência no sentido amplo do termo.

Talvez, mais à frente, eu me restrinja a determinados segmentos da docência.

Nunca vi profissionais tão dedicados à tarefa de formar, de encantar e de instruir, quanto os educadores. Realmente, somos imprescindíveis (com destaque para o somos, pois, até então, faço questão de me incluir aí). Nossa vida é uma eterna vigília, nunca repousamos quando o assunto é o nosso papel social. E, mais do que pensar nos alunos, sempre somos tentados a bolar estratégias para melhorá-los – os alunos –  e, quem sabe, ajudar a torná-los iluminados salvadores do mundo. De tal sorte que eles sejam, como um lusco-fusco, um nosso reflexo, estampado no futuro.

Que futuro alvissareiro, nem consigo imaginar.

Mas, querido Diário, me ocorreu o seguinte: nós, os educadores, somos também especialistas em autopromoção. Melhor, muito melhor, somos especialistas em autocomiseração.

Aos leitores do futuro, que nunca lerão o que escrevo aqui, faço uma modesta ressalva: não pensem que autopromoção e autocomiseração se excluem. Não, no nosso caso, pois a forma de fazermos nosso marketing pessoal e coletivo, é precisamente pela autocomiseração, pessoal e coletiva. Não agimos desta forma por malícia alguma, o fazemos porque é o único modo que está ao nosso alcance de sermos reconhecidos.

Acreditamos na honradez e nobreza do nosso labor, justamente porque a tarefa à qual nos esforçamos diariamente, rivaliza com a beatitude das almas santas. Carregamos uma cruz em benefício do mundo. Nossa sensibilidade faz com que soframos tal qual os poetas sofrem. Este sofrer é difícil de ser suportado. Portanto, devemos nos autopromover. É isso que importa.

Realizamos até movimentos grevistas com o intuito de melhorar nossos alunos. Somos o exemplo, que arrasta. Quem poderia padecer assim?

Se problemas ou distorções existem, é sempre culpa do sistema, que, via de regra, é injusto, desigual, desumano. Não esqueça disso.

Autocomiserar-se implica em responsabilizar os culpados por nosso padecer.

Chega a ser encantador o modo como as pessoas se referem a nós, apontando que, a despeito da nobreza da tarefa executada, não recebemos do sistema o crédito devido (sistema este que, é bom frisar, paga nossos salários, constrói escolas e manda os alunos para escola). Nos dedicamos a um fazer tão especial e alvissareiro e, ao mesmo tempo, tão sofrido, que chego a ter pena de mim, por conta de um sofrimento que ainda não vivi.

Veja só, Diário! Não tem como ser diferente. Acreditamos piamente, e quem acredita, propaga e difunde “verdades”. Espalhamos nossa crença, fazemos da nossa vida uma profissão de fé, que é única e exclusivamente a preocupação com o bem de nossos alunos e, consequentemente, com a construção de um mundo melhor. Não buscamos louros pelas vitórias. Basta, tão somente, conseguir trabalhar por um mundo melhor. (Ainda que não consigamos, de fato, trabalhar para mundo um melhor)

Veja bem! Pera lá! Não se precipite!

Mesmo entre nós, nem todos somos iguais. Uns são mais iguais que os outros, ainda que desejemos e preguemos a igualdade, posto que quem é professor de escola pública tem mais direito à autocomiseração do que aqueles que são professores de escolas particulares.

Diante disso, não gostaria de falar dos nobres e, pouco comiserados, até então, professores das escolas particulares. Uma vez que, estes aí, estão em uma situação melhor. Eles estão tão bem, que mesmo durante a pandemia de “peste chinesa” estão trabalhando presencialmente, com todos os protocolos sanitários sendo respeitados.

Mas, aqui oh, presta atenção, Diário!, entre nós os professores da chamada educação pública, existem entrepostos de comiseração, porque a educação pública não é um todo homogêneo. Os professores da rede federal estão em um patamar diferente dos docentes das escolas municipais e estaduais. Na realidade, é possível fazer uma certa generalização em relação aos professores federais, em termos salariais, sejam dos IFs ou das UFs da vida, porquanto se encontram em situação melhor do que a maioria absoluta dos outros profissionais da docência, inclusive, dos trabalhadores da educação privada. Tanto os da educação básica, como aqueles da educação superior.

Mas, meu objetivo com você, querido Diário, nunca será tratar de uma questão tão mundana e secular quanto o salário. Isso não importa, ainda que eu reclame que não recebo aumento salarial. Sou professor vocacionado, por amor. Meu objetivo continua sendo mostrar as coisas sagradas, práticas permeadas de honradez e sensatez dos docentes. O profano não tem lugar junto ao sagrado, ainda que aqui e ali profanemos o bom senso.

É claro que quero falar sobre o grupo ao qual pertenço.

Nós estivemos entre os primeiros a perceber que não existia “segurança sanitária” para continuarmos com nossas aulas presenciais. Em razão disso, não colocamos nossos alunos em situação de risco. Também não nos quedamos em risco. Lembre-se: autocomiseração. Nós estamos e estivemos entre os que mais sofreram quarentenados em casa, recebendo salário regiamente em dia. Cuidando e se estressando com o bem-estar dos alunos. Muitos de nós já até aproveitamos a pandemia para adotarmos o dialeto neutro, ainda que este não seja uma norma, mas vamos empurrá-lo goela abaixo da sociedade. Por quê? Porque é preciso ser vanguardista para a sociedade avançar. O monopólio da virtude é nosso. Nós sabemos o que as crianças e jovens precisam saber e fazer para serem bons. Portanto, se estabelecemos práticas que estejam ao arrepio dos costumes, é porque reconhecemos o caminho estético para a fruição adequada da vida.

Nós passamos quase sete meses do ano de 2020 sem ministrar aulas. Sim, inclua-se aí, as on-line – síncronas ou assíncronas. Por qual motivo fizemos isso? Fácil responder: não queríamos deixar ninguém para trás. Isso porque se uma parte do alunado não tinha condições de assistir as aulas, por falta de acesso à internet, ou quiçá, pior ainda, pela falta dos meros aparelhos para que conseguissem ter este mesmo acesso. Nós não poderíamos privilegiar uma outra parte. Isso mesmo, privilegiar. Vez que incorreríamos na agudização da tão malfazeja desigualdade. Assim, o velho lema “ninguém fica para trás” foi prontamente resguardado e defendido com unhas e dentes, para não deixar uma parte para trás, decidimos que seria melhor deixar todos para trás, a bem da igualdade… Onde alguns enxergam o copo meio vazio, eu enxergo meio cheio.

Ahh…Diário. Nestas minhas confissões não é possível que eu esqueça o fato de estarmos há dezoito meses… é, não são 18 dias, sem dar aula presencial. Se você me perguntasse os motivos, eu os elencaria todos:

– Proteção dos profissionais da educação (Não esqueça a autocomiseração). Se nós morrermos, quem cuidará dos nossos alunos? Quem sofrerá por nós?

– Proteção dos alunos. Ainda que não perguntemos para eles se eles se sentem protegidos, ou não, por nós. Quem eles acham que são para nos afrontar com uma pergunta dessas? Nós sabemos o que é melhor para eles.

– Proteção das famílias dos nossos alunos. Sim, sim, nós também sabemos o que é melhor para estas famílias.

Não esqueça, que nossa autocomiseração nos aponta para o profético dever de sinalizar virtude. Ou seja, devemos mostrar que nos preocupamos com o mundo. Com a segurança sanitária de todos. Sim, sei que nem a errática Organização Mundial de Saúde (OMS) é tão radical assim em suas determinações sanitárias. Nós tendemos a pensar que todo cuidado nunca é demasiado. Os alunos estão bem de saúde, longe do tête-a-tête da sala de aula. Em time que se está ganhando não é necessário mexer. Quem sabe a OMS e adjacências não nos agradeçam algum dia.

Sim, sei que os filhos destes mesmos professores, ou seja, nossos filhos, estão, muito provavelmente, assistindo aulas presenciais nas escolas particulares. Mas isso não vem ao caso. Nosso lema é: Ouça o que eu digo, não faça o que eu faço!

Não, Diário, não ouses fazer perguntas. Nunca te dei este direito. Só quero que você seja meu confessionário.

O quê? Queres saber qual o grande empecilho para que voltemos ao ensino presencial?

Ahh! Te respondo, bobinho!

Segurança Sanitária!

Sei. Sei que nosso salário é melhor do que a massa dos professores por aí. Sei que nossas condições físicas de trabalho também são melhores. Sei que teremos dinheiro do governo federal. Mas não é tão fácil assim. Lembre-se, Diário! É melhor não pedir o dinheiro para voltar logo às aulas, com segurança. Vai que eles negam? Portanto, é melhor falar que não tem dinheiro. Tem para fazer pesquisa e extensão não presenciais, tem para outras coisas, não presenciais. Mas para isso aí, não.

Mas, pior ainda, vai que eles não negam? Como ficaria nossa autocomiseração se o governo federal cedesse essas verbas? Com que cara ficaríamos?

Autocomiseração…autopromoção…como vamos sinalizar virtudes se não resistirmos às tentações mais animalescas: dar aula.

Estamos no caminho de solucionar tudo. Nossos alunos não ficarão para trás. Basta não reprová-los. O aprendizado a gente vê depois!

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