Lula, o bom selvagem
No último dia 26, Antônio Palocci, que ocupou as pastas da Fazenda e da Casa Civil, respectivamente nos governos Lula e Dilma, escreveu uma carta, endereçando-a à presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), a senadora Gleisi Hoffman, pedindo desfiliação da legenda.
Palocci adiantou-se, pois fatalmente seria expulso do partido no qual é agora visto como traidor, por ter contado os bastidores de transações não republicanas, mesmo sem entrar em maiores detalhes, porquanto ainda estar negociando o acordo de colaboração premiada.
Alega que todo o conteúdo do depoimento criticado pelo partido descreve apenas a verdade dos fatos e chega a afirmar que em breve tudo estará devidamente esclarecido pelos próprios integrantes do PT e que até “Lula irá confirmar tudo isso, como chegou a fazer com o ‘mensalão’, quando, numa importante entrevista concedida na França, esclareceu que as eleições do Brasil eram todas realizadas sob a égide do caixa dois, e que era assim com todos os partidos”.
Em dado momento, o ex-prefeito de Ribeirão Preto, ex-deputado federal e ex-ministro diz ter ficado chocado quando viu “Lula sucumbir ao pior da política no melhor dos momentos de seu governo.” Aqui ecoa Rousseau e a noção de bom selvagem, quando o filósofo do século das luzes proclama que o estado de natureza significa não o retorno a um paraíso original mas um trampolim para a análise da própria sociedade ocidental, um instrumento adequado para pensar o próprio estado de civilização. São suas palavras: “Pergunto qual das duas – a vida civil ou natural – é mais suscetível de tornar-se insuportável. À nossa volta vemos quase somente pessoas que se lamentam de sua existência, inúmeras até que dela se privam assim que podem… Pergunto se algum dia se ouviu dizer que um selvagem em liberdade pensa em lamentar-se da vida e querer morrer. Que se julgue, pois, com menos orgulho, de que lado está a verdadeira miséria”.
Apresentado por décadas como símbolo da persistência e da resiliência do homem sofrido das camadas marginalizadas da população brasileira, Lula virou um personagem de si mesmo, ainda que distante do que é na vida real. Hoje, dissolve como cebion mergulhado n’água.
O então condestável do PMDB, o homem que liderou a travessia do país da ditadura para a democracia, acertara no alvo. O Lula de três décadas atrás já era cevado nos mimos que empresários lhe davam. Gostou e manteve a postura de ser mimado, pela elite que ele permanece atacando nos discursos e para quem também deu mimos, com recursos públicos, nos bastidores.
A imagem construída por Ulysses do homem pobre que gosta de ser mimoseado pelos ricos é reforçada pela que Palocci molda, a do líder popular que se corrompeu. Em ambas a culpa parece recair sobre os ombros da sociedade e/ou dos ricos malvados que, ao invadirem o espaço edênico, não respeitaram o nosso Adão político. Ou como concluiu Rousseau sobre a origem da desigualdade entre os homens, se “há uma bondade original da natureza humana: a evolução social corrompe-a”.
Lula, o primitivo, foi engolido por Lula, o civilizado. Este é corrupto; aquele, puro.
Por Sérgio Trindade