Fascistas e fascistas
Recebi, ontem, final da tarde, a visita de um amigo que não via há anos.
Conversamos sobre nossa infância e adolescência, sobre casamentos acertadamente desfeitos (o meu e o dele), sobre filhos, sobre trabalho, sobre o nosso futuro e sobre o futuro do país.
Como não poderia deixar, nesta parte o assunto descambou para política e ele, de forma constrangida, declarou que votou e votará no presidente Jair Bolsonaro. Eu, que nada tenho com isso, porque para mim, em qualquer regime que se apresenta como democrático, o cidadão é livre para fazer as escolhas que quiser, disse que não precisava ficar constrangido por dizer de suas opções políticas.
Aliviado, ele justificou a opção por Bolsonaro e eu, que já fui eleitor da esquerda e migrei para o centro, mantive minha conversa com meu amigo de maneira educada e civilizada, porque só me zango, em assunto de política, com cerceamento de opinião. O resto é do jogo; se o meu oponente radicaliza de lá, posso radicalizar de cá e assim vamos.
Antes de seguir, faço uma observação: colegas e amigos, aqueles que dividem o mundo político em dois polos, dizem ser minha opção centrista vergonha de dizer que sou de direita; os que assim acham (digo acham, porque qualquer um para os quais as opções de vida sejam apenas duas frentes não pensam nada sobre nada, só acham) não me conhecem minimamente. Parafraseio o ex-presidente JK: em matéria de política, Deus me poupou o sentimento do medo.
Nunca tive receio algum de dizer minhas opiniões. Não as exponho para agradar e nem ofender pessoa alguma, apenas para dizer o que gosto, penso e quero. Quem não gosta de mim assim, que se afaste. Falta não fará.
Migrei da esquerda para o centro, optando por duas vezes, em 2014 e em 2018, por Marina Silva. O meu candidato em 2014 seria Eduardo Campos, morto no início da campanha; dali em diante, senti-me politicamente órfão. Como Marina o substituiu e carregava um toque de abrandamento na radicalização política que se acentuava desde as manifestações de 2013, votei nela. Já o voto em Marina, em 2018, foi por exclusão. Até simpatizava, do ponto de vista programático, com a candidatura de Geraldo Alckmin, mas desconfio dele desde 2006, quando abandonou a pauta do partido, então a bordo de discurso relativamente privatista, para relativizar o legado deixado por Fernando Henrique Cardoso.
Minha mudança de posição (da esquerda para o centro), em meados da década passada, foi fruto de leituras e de amadurecimento político, ao longo dos anos 1990 e dos anos 2000. Aceito qualquer questionamento civilizado sobre isso, não aceito, porém, patrulha alguma. Decido o que quero e faço após certo tempo de reflexão. Por isso, dou-me bem com gente de qualquer quadrante político que respeita minha postura, como provoco e confronto todos, repito, todos que aberta e, pior, traiçoeiramente atuem para me intimidar.
Politicamente órfão desde a morte de Eduardo Campos, venho fazendo minhas escolhas presidenciais por exclusão. E isso me faz optar, nesta eleição, por Ciro Gomes, uma espécie de coronel moderno, com laivos autoritários em alguns momentos e com pauta econômica nacional-desenvolvimentista, adequada até os anos 1960-70 mas ultrapassada para os dias atuais.
Conhecendo-me pouco, afinal não o via há mais de trinta anos, o meu amigo tentou me convencer a votar em Bolsonaro. Em vão. Não sou homem para ser convencido em duas horas de conversa. Em condições normais, o meu azimute político leva muitos anos para mudar; em momento de crise extrema, um grave acidente de percurso pode levar à mudança brusca, e esta situação não se configura agora. Para explicar-lhe, eu disse:
– Caro, fui eleitor do PT por mais vinte anos. Na fase inicial, entre 1988 e 1992, de maneira até radical. Um pouco mais brando após a posse de Itamar Franco, por quem eu nutria simpatia pessoal. Mudei muito minha postura em relação às posições do partido quando ele ficou contrário ao Plano Real. Era, para mim, a terceira bola fora, depois de se recusar a apoiar Tancredo Neves, em 1985, e de se recusar a assinar a Constituição, em 1988. Meu conflito aumentou ainda mais quando da crise do mensalão, em 2005, e resultou em conflito aberto quando vi, entre 2010 e 2014, instituições federais de ensino, entre as quais aquela na qual eu trabalho, transformadas em comitês político e eleitorais do PT. O caso ficou sem volta, pois eliminou qualquer possibilidade de eu votar em candidatos presidenciais do PT, mesmo em segundo turno, quando as pessoas que se puseram contra o partido passaram a ser acusadas de fascistas. Nada é tão fascista como o ataque leviano e criminoso que esse pessoal fez contra Fernando Henrique Cardoso, José Serra e Geraldo Alckmin. E principalmente contra Marina Silva, em 2014. Eles são políticos e relevam. Eu que sou do campo político não esqueço; fui chamado de fascista – às escondidas, porque pela frente o fulano se acovarda – por um hoje diretor-geral de campus da instituição, nas imediações de Natal, na qual trabalho. E era uma pessoa com quem eu tinha uma relação cordial. Provavelmente não foi o único. Houve coisas até piores, mas deixa para lá. Sabe por que a turminha me desancava e me desanca? Porque eu não sou mais petista e digo isso abertamente, sem receio algum. No entanto, minha postura em relação ao PT não significa meu apoio a Bolsonaro. Não voto nele. Tenho bons amigos que votam nele por convicção e outros que estão com ele por pragmatismo político, pois é o candidato de direita que pode vencer o da esquerda – bandeira pragmática semelhante à levantada pela esquerda para eleger Lula no primeiro turno. Nem no segundo turno o pragmatismo político – sendo os dois candidatos Bolsonaro e Lula, como se afigura, se segundo turno houver – alcançar-me-á. Você é uma pessoa civilizada e saberá entender isso.
Conversamos sobre outros assuntos, voltamos à política, sem que ele tentasse me convencer de mais nada. Despedimo-nos com a certeza de que nossa amizade não foi abalada. Ele segue de Bolsonaro e eu, sem opções de meu agrado, vou de Ciro.