Sem paciência

por Sérgio Trindade foi publicado em 08.out.24

Cláudio de Moura Castro escreveu um ensaio na revista Veja, final dos anos 1990, no qual registrava a dificuldade que o brasileiro tem de ler.

A partir de um texto que escreveu mostrando que era inviável para qualquer país gastar 40% do PIB com saúde, choveram cartas de seus leitores, “algumas generosas, outras iradas”. Castro disse ser preocupante “a liberdade com que alguns leitores interpretam os textos. Muitos se rebelam com o que eu não disse (jamais defendi o sistema de saúde americano). Outros comentam opiniões que não expressei e nem tenho (não sou contra a universidade pública ou a pesquisa). Há os que adivinham as entrelinhas, ignorando as linhas. Indignam-se com o que acham que eu quis dizer, e não com o que eu disse. Alguns decretam que o autor é horrendo neoliberal e decidem que ele pensa assim ou assado sobre o assunto, mesmo que o texto diga o contrário. (…) Meus comentaristas escrevem corretamente, não pecam contra a ortografia, as crases comparecem assiduamente e a sintaxe não é imolada. Contudo, alguns não sabem ler. Sua imaginação criativa não se detém sobre a lógica aborrecida do texto. É a vitória da semiótica sobre a semântica”.

Confesso que, ao contrário do Cláudio Moura Castro dos anos 1990, eu estou com cada vez menos paciência para tudo, principalmente para conversar assuntos polêmicos. Tenho cada vez menos contatos sociais. Mantenho apenas os estritamente necessários, vinculados às atividades profissionais, e alguns poucos com pessoas de quem gosto verdadeiramente. No mais, prefiro me manter isolado. Ermitão. O termo não é, provavelmente, o mais adequado, por isso, nos bate-papos com amigos tenho me batizado como antissocial.

Há dois assuntos, futebol e política, pelos quais sou fascinado e gastaria horas discutindo-os. Sobre o primeiro, dadas as características do jogo jogado atualmente, com muito físico e pouca técnica, tenho diminuído as conversas; sobre o segundo, tendo vista o grau de idiotice de muita gente que se imagina bafejada por lufadas divinas, quase não converso mais, exceto com quem é civilizado e está disposto a ser enfrentado e ter os seus argumentos contestados.

Não dá para discutir política com gente que não entende sarcasmo e ironia.

Fui percebendo, com o passar dos anos, que eu dizia uma coisa, de forma sardônica, e muitas pessoas não entendiam a ironia. Eu, então, era obrigado a desenhar e, depois, a explicar o desenho e, na sequência, desenhar a explicação.

Passou a ser atividade de risco usar figuras de linguagem com diversos interlocutores ou diante de uma plateia, porque muitos entendem as coisas literalmente, subvertendo o sentido do que foi dito e atribuindo a você as ideias mais idiotas que lhes ocorrem, para assim se apresentarem como moralmente superiores, quando a superioridade que têm é a da indigência cognitiva e intelectual ou, pior, a da intolerância.

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