Esquerda festiva (1)
São muitas as histórias acerca do gosto refinado de parte da esquerda brasileira.
Frequentadora de reuniões, festas e convescotes regados a boa bebida e boa comida, esta parte da esquerda não passa aperto nem na hora do aperto.
No livro Enquanto houver champagne, há esperança, biografia do jornalista e colunista social Zózimo Barroso do Amaral escrita pelo também jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, há uma história saborosa e didática sobre o bom gosto e o aburguesamento dos “operários” brazucas.
Zózimo desnudou por quase trinta anos (1969 a 1997), em sua coluna n’O Globo e no Jornal do Brasil, a sociedade brasileira. A sua coluna social era diferente porque não fazia apenas registros sociais, pois em meio à notinhas dava notícias relevantes das mais diversas áreas sem freios significativos, o que gerou muitos desafetos e até mesmo inimigos.
Logo depois de o país ser presenteado com o AI-5, o colunista publicou uma nota no dia 1º de abril de 1969 que o levou à prisão. Diz Joaquim Ferreira no seu belo livro: “Zózimo não era inocente do ‘crime’ que lhe estava sendo imputado. Havia informado a um colega na redação que, com a notícia, pretendia comemorar à sua maneira o quinto aniversário do golpe militar, ocorrido em 1º de abril de 1964. Tentou ser discreto. No título botou ‘100 anos depois…’, aparentemente homenageando o século da Guerra do Paraguai (1864-1870), o país que servia de pano de fundo à cena hilária narrada por ele. A nota saiu assim:
- Os jornalistas que fizeram a cobertura do almoço que reuniu na Foz do Iguaçu na semana passada os presidentes do Brasil e do Paraguai, generais Costa e Silva e Alfredo Stroessner, estão até agora sem entender o insólito da presença ativa e participante de cerca de 100 indivíduos de má catadura, responsáveis pela segurança do chefe de Estado paraguaio, que praticamente ocuparam o Brasil durante um dia inteiro. Deles partiram todas as ordens e esquemas envolvendo os problemas de segurança, com um desembaraço e uma desenvoltura dignos de quem está em seu próprio país. (…)
- Perguntem aos jornalistas e aos diplomatas do Itamaraty que lá estiveram o número de cotoveladas e empurrões que levaram e terão uma ideia dos desmandos dos truculentos elementos que compõem a guarda pessoal de Stroessner.
- Pois até o general Lyra Tavares, ministro do Exército, foi de uma feita empurrado pelos atuantes cotovelos dos policiais e se não é amparado pelas pessoas que se encontravam ao seu redor teria caído.
- Curiosamente, porém, a valentia e a determinação da guarda paraguaia contrastavam com a lividez do general Stroessner quando este se viu compelido a entrar num helicóptero a convite do presidente Costa e Silva para uma visita à vol d’oiseau das Cataratas do Iguaçu”.
Publicada na terça-feira que antecedia à Semana Santa, no mesmo dia Zózimo foi contactado, em tom amistoso, pelo Ministério do Exército, tendo de comparecer “ao prédio da instituição, no Centro do Rio”, onde, depois de breve diálogo com um capitão, foi preso, sendo posteriormente enviado para o quartel do Batalhão da Polícia do Exército, na Tijuca.
Ali esteve num espaço com Bezze, líder estudantil e um dos organizadores da Passeata dos Cem Mil, no ano anterior.
Membro do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (CACO), da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Bezze era “uma referência da política de agitação estudantil. Ele estava no seu quinto mês de prisão, era o mais antigo de todos ali e uma espécie de líder da cela. Por alguns dias dividia o cargo com Ênio Silveira, editor da Civilização Brasileira e filiado ao Partido Comunista Brasileiro, também preso assim que o AI-5 radicalizara a opção dos militares pela ditadura”.
Assim que reconheceu o colunista, Bezze anunciou aos companheiros e camaradas de cela: “Pessoal! Os homens enlouqueceram! Eles agora estão prendendo eles mesmos!”. Todos agora eram suspeitos.
A esposa de Zózimo, Márcia Barrozo do Amaral, visitou-o no segundo dia, quinta-feira santa, e levou guloseimas para o marido, uma “cesta da Lidador, fina loja de importados”, repleta de “queijos camembert, brie, roquefort e outras estrelas da fromagerie francesa. Zózimo, morto de vergonha com a ostentação em pleno território dos que brigavam pela ascensão do proletariado faminto, colocou as iguarias no mesão socialista. Depois, cochichando, deu um toque em Marcia: ‘Da próxima vez traz Catupiry’”, no que foi prontamente atendido, dois dias depois, quando Márcia retornou trazendo “outra cestinha de delicadezas”, dessa vez comidas que “falavam o português mais carioca possível. Nada de importados. Tinha catupiry, queijo minas e mortadela. Tudo gostoso, e agora politicamente compatível com o cenário espartano do presídio. A turma comeu, agradeceu e foi dormir”, mas Bezze, o líder dos presos, percebeu a mudança de sotaque no cardápio e, no dia seguinte, chamou Zózimo para um particular e decretou: “Olha aqui, meu prezado colunista, nós estamos presos, jogados neste fim de mundo, mas nem por isso perdemos a nossa dignidade, compreendeu?”
Paralisado, Zózimo questionou: “O que houve? O que foi que eu fiz?”, afinal vinha sendo tratado até aquele momento “com sorrisos. Era carioca da gema. Passara a infância jogando bola com os moleques da favela da Praia do Pinto, torcia pelo Flamengo no Maracanã, transitava sem problemas entre os grupos da cela. Todos pareciam gostar dele, e ele, por sua vez, tinha certeza de estar sendo claro na reciprocidade. As diferenças de classe social evaporavam-se ali. Eram iguais na mesma noite escura desenhada pela ditadura”. E agora, aquilo. Mas o estudante revolucionário esclareceu sem titubear: “Da primeira vez a sua mulher trouxe camembert, brie, um banquete delicioso. Ontem foi catupiry. Antes que a coisa chegue ao Polenguinho, eu quero te dizer o seguinte: só queijo francês! Do bom! Nós somos socialistas, mas gostamos é de queijo francês, morou?!”. Decretou isso com “o rosto silenciosamente fechado, vermelho, expressão da mais furibunda ira, numa pausa dramática espetacular”, numa performance teatral digna de grandes mestres, para, logo em seguida, explodir “numa gargalhada. Era tudo brincadeira. Naquele fim de mundo, qualquer queijo seria bem-vindo”.