O Brasil sem homens e sem ideias

por Sérgio Trindade foi publicado em 25.nov.24

Estou terminando de ler Oswaldo Aranha, uma fotobiografia, excelente livro de Pedro Corrêa do Lago, neto do biografado.

Impossível não estabelecer conexões com o Brasil dos dias atuais.

Oswaldo Aranha começou a vida pública nos embates regionalistas do Rio Grande do Sul, onde foi prefeito de Alegrete. Depois, foi o principal formulador e agente do movimento revolucionário que, em 1930, derrubou a primeira república, chamada de velha em oposição à nova ordem inaugurada. De modo geral, os estudiosos reconhecem que a Revolução de 1930 não teria ocorrido ou tomaria rumo diverso sem a intervenção enérgica de Oswaldo Aranha. Segundo Pedro Côrrea, talvez “não acontecesse se fosse liderada apenas por Getúlio Vargas ou quem sabe não aconteceria da maneira que ocorreu. Pesaram o entusiasmo e a capacidade de articulação política”.

O ainda jovem político gaúcho tornou-se ministro da Justiça e ministro da Fazenda, depois embaixador nos Estados Unidos, ministro das Relações Exteriores e, durante toda a vida pública, foi uma espécie de Moisés que nunca pisou na terra prometida, à época sediado no Palácio do Catete.

Sedutor, Oswaldo Aranha foi o número 2 enquanto Vargas foi o número 1 e, morto este, articulou com o mineiro Tancredo Neves, seu colega de ministério na segunda passagem do caudilho de São Borja à frente do governo federal, a candidatura de Juscelino Kubitschek de Oliveira à Presidência da República. O jornalista Hélio Fernandes dizia que a “personalidade de Oswaldo Aranha era fabulosa… Fisicamente irresistível, seu tipo popularizou-se rapidamente, identificável de longe em fotografia, desenhos ou caricaturas”.

Alzira Vargas do Amaral Peixoto, filha predileta e confidente de Vargas, disse numa entrevista dois anos antes da morte de Aranha, que nunca vira “duas figuras tão díspares se darem tão bem, era uma espécie de concubinato político”, repetindo depois, na obra que escreveu Getúlio Vargas, Meu Pai: “Como brigavam, como se disputavam e como se ajudavam!”

De acordo com Alzira Vargas, eles não perdiam a oportunidade de criticar um ao outro, mas não admitiam em hipótese alguma que terceiros se metessem na contenda. “Parecia uma briga de marido e mulher na qual ninguém podia se meter”. (…) As diferenças entre eles eram visíveis, claras. Oswaldo, alegre, falastrão, extrovertido, com ambições recalcadas, sonhos irrealizados. Getúlio, quieto, comedido, introvertido, ambições realizadas aparentemente, sonhos impossíveis. Porém, conversavam, se entendiam, se completavam.” Para Lira Neto, o mais conceituado biógrafo de Vargas, Oswaldo Aranha sempre foi fiel ao amigo. Às vésperas da revolução, chegou a dizer: “Não serei nunca rato de naufrágio, vou até o sacrifício total”.

Nascido doze anos depois de Getúlio, Oswaldo Aranha seria o número 2 da geração que ingressou na vida política na década de 20 – a melhor e mais brilhante safra de homens públicos da história do Brasil republicano. Só o elenco gaúcho dá a dimensão da grandeza do que o Brasil tinha à disposição: João Neves da Fontoura, Flores da Cunha, Lindolfo Collor, Batista Luzardo, Luís Carlos Prestes e outros. A safra completa-se com nomes de outros estados: o cearense Juarez Távora, o mineiro Virgílio de Mello Franco, o fluminense Eduardo Gomes, o sergipano Siqueira Campos, o paulista Armando de Salles Oliveira, o paraibano José Américo de Almeida, o pernambucano Agamenon Magalhães. Nunca mais o Brasil veria, ao mesmo tempo, tantos políticos vocacionais esbanjando talento e disposição.

Pois foi justamente nessa época que Oswaldo Aranha proferiu, em 1933, uma de suas frases mais famosas: “O Brasil é um deserto de homens e de ideias”.

As gerações seguintes ainda produziram homens vocacionados para a vida pública, mas hoje, bem, hoje a história é diferente – e Aranha certamente mudaria seu parecer sobre a geração de nove décadas atrás, afinal se aquela brilhante geração lhe pareceu miseravelmente limitada, o que diria se estivesse vivo hoje e presenciasse nulidades sem par comandando o país que amou e o qual, de certa forma, homenageou no sepultamento de Getúlio Vargas, o amigo e rival de uma vida inteira?

Disse Oswaldo Aranha à beira do túmulo, no começo da bela oração fúnebre: “Não te trouxe meu abraço, mas aquele aperto de mão amigo de todos os dias, para que continuemos, tu na eternidade e eu nessa vida, o diálogo de dois irmãos ligados pela terra, pela raça, pelo serviço e pelo amor ao Brasil”.

O deserto oswaldiano é, nos dias que seguem, muito mais profundo do que um dia foi.

Vivemos um momento desesperador sem nenhum representante do povo, de nenhum partido político, que possa reivindicar a intrincada e hermética condição e vestir a capa de liderança nacional. O deserto de homens e ideias fica claro quando o país corre atrás de dois homens públicos que, nos anos 1920-1960, quando Oswaldo Aranha viveu sua vida pública, estariam, se muito, à frente de alguma câmara municipal ou perdido, exercendo mandato pífio, no Congresso Nacional.

No Brasil atual faltam não somente homens e ideias, mas cadeias onde possam ser enfiados os salafrários que abundam na cúpula dos três poderes.

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