O ofício do professor não é o mesmo do militante partidário
Já escrevi sobre a decepção que alguns ex-alunos meus têm pelo fato de eu não mais ser esquerdista. Sou frequentemente cobrado, em sala de aula e principalmente fora dela, pelas minhas posições e retruco dizendo o mesmo: não estou em sala de aula para atuações panfletárias e para fazer proselitismo político. No segundo turno da última campanha para prefeito, então, depois que declarei voto em Paulinho Freire, pipocaram mensagens de desagrado pela minha posição. A todos, sem exceção, expus minhas posições e opções e a nenhum tentei mostrar como não uso a sala de aula para conduzir meus alunos em direção às minhas posições políticas e ideológicas. Eles sabem disso, sabem que respeito o ofício que escolhi e sabem que não o conspurco por nada, sabem que manifesto minhas opiniões e posições em vários espaços e trincheiras, mas nunca na sala de aula.
Já militei, timidamente, nas hostes esquerdistas, entretanto nunca o fiz de forma cega ou acrítica e sempre fui partidário de posições muito mais próximas do liberalismo e da social-democracia e meio distantes dos anseios socialistas. Defendo a liberdade individual (de pensamento, de expressão, religiosa, sexual) e a igualdade (jurídica, de oportunidades, de empreender).
Tenho os meus gurus, entre os quais o sociólogo alemão Max Weber – para quem a tarefa crucial do professor é inculcar nos estudantes os conhecimentos necessários, despertando o interesse e moldando a percepção mental deles de forma a alargar os conhecimentos – como minha inspiração quando o assunto é lecionar e recorro à citação de alguns de seus textos para fundamentar minha posição. Na obra O sentido da “neutralidade axiológica” nas ciências sociais, Weber registra que o professor deve “evitar a identificação das decisões eminentemente pessoais que um homem deve tomar por si próprio, com o ensino especializado” e se tiver de manifestar suas posições pessoais em sala de aula que o faça deixando evidente quais são os padrões de valor que guiam suas manifestações, para não misturá-las, de forma imprecisa, com considerações empíricas e avaliações práticas, bem como não apresentar as suas posições pessoais como se fossem científicas, visto que opiniões pessoais não têm o mesmo status epistemológico do conhecimento científico.
Mesmo reconhecendo que haja os que se privilegiam, nos dias de hoje, do espaço que têm em sala de aula para preencher um vácuo que o próprio Weber chegou a perceber em sua época e apontou na conferência Ciência como vocação, a saber, o de que muitos jovens buscam nas aulas análises e formulações próprias à cátedra “algo diferente daquilo que está à sua frente, (…) um líder, e não um professor”, é necessário frisar em letras garrafais que as qualidades que fazem uma pessoa excelente professor não são as mesmas que fazem o profeta ou o líder, logo treinamento científico algum faria aflorar as características importantes para um líder político. Mais, a maior parte dos professores não tem e provavelmente nem gostaria de ter essas qualidades. E conclui, em passagem exemplar n’O sentido da “neutralidade axiológica” nas ciências sociais, que qualquer “professor poderá observar que o rosto do estudante se ilumina e as suas feições ficam tensas quando começa a ‘defender’ a sua doutrina pessoal. E também se dará conta de que o número de estudantes nas suas aulas crescerá vantajosamente pela esperança de que assim suceda.”
No centro dessa concepção está a importância máxima conferida à separação entre ciência e valor, assim como a tarefa máxima de preservar essa separação no âmbito científico. Contudo, é preciso indagar sobre os motivos da ênfase nessa separação ou, nos termos de Weber, em Ciência como vocação, por que o verdadeiro professor deve se comportar menos como um líder e mais como um verdureiro? A resposta a essa pergunta se relaciona com um conceito weberiano fundamental, o de desencantamento do mundo, o qual apregoa que, no mundo, não se encontraria mais um princípio universal que pudesse justificar e significar as escolhas valorativas. Associado à ciência moderna, o conceito de desencantamento se refere, inescapavelmente, à ideia de “perda de sentido” do mundo. Estaria disponível, no mundo desencantado, uma diversidade de opiniões, visões de mundo pessoais, de modo a se tornar impossível uni-las em um todo absoluto. A capacidade integradora anteriormente existente teria sido posta em questão, restando apenas a cada um dos indivíduos, segundo seu ponto de vista último, sem o sacrifício do intelecto, decidir qual é o deus ou o demônio que se deve ou se quer seguir.
Diante de tal realidade, o professor só poderia fornecer os meios para se agir politicamente, sem jamais estabelecer qualquer fim – situação que não era encontrada entre os “antigos”. Segundo Weber, os gregos, principalmente Platão, consideravam que o conhecimento e o ensino do Belo, do Bem, da Coragem deveriam abrir o caminho para se agir acertadamente na vida e, acima de tudo, para formar cidadãos do Estado. Para os renascentistas, a ciência significava o caminho para a arte verdadeira e para a verdadeira natureza. Alguns viram na ciência o caminho para encontrar a prova da providência divina, um caminho para Deus; outros viram, ainda, a possibilidade de a ciência se constituir como caminho para a felicidade. Diz Weber: “O verdadeiro professor terá escrúpulos de impor, do alto de sua cátedra, uma tomada de posição qualquer, tanto abertamente quanto por sugestão (…). É imperdoável a um professor valer-se dessa situação para buscar incutir em seus discípulos as suas próprias concepções políticas, em vez de lhes ser útil, como é de seu dever, através da transmissão de conhecimentos e de experiência científica. (…) Caso ele se julgue chamado a participar das lutas entre concepções de mundo e entre opiniões de partidos, deve fazê-lo fora da sala de aula, deve fazê-lo em lugar público, isto é, através da imprensa, em reuniões, em associações, onde achar melhor. Sem dúvida, é muito cômodo exibir coragem num local em que os assistentes e, provavelmente, os oponentes, estão supliciados ao silêncio. (…) O professor pode mostrar apenas a necessidade da escolha, mas não pode ir além, caso se limite a seu papel de professor e não queira transformar-se em demagogo”.