O globo da global

por Sérgio Trindade foi publicado em 07.jan.25

De tempos em tempos intelectualoides aparecem com termos e expressões novas ou requentadas para nada explicar: ressignificar, empoderamento, lugar de fala, são tantas camadas, resiliente…

Frases/orações do tipo “(…) Desta forma, o fenômeno da Internet promove a alavancagem do investimento em reciclagem técnica e tecnológica”, “(…) a competitividade nas funções estende o alcance e a importância do remanejamento dos quadros funcionais”, etc. dão o tom do dito que nada diz.

Um lero-lero danado, cuja única serventia é esconder a ignorância completa ou relativa sobre o que o orador/escritor pretende falar ou escrever.

A vitória de Fernanda Torres na disputa pelo Globo de Ouro parece ter potencializado os retóricos de gafieira

Uma manchete do 247 estampou: “A democracia venceu”. Que coisa mais ridícula. Quem venceu o Globo de Ouro foi uma atriz fenomenal. Como venceram maravilhosos compositores malhando e denunciando o regime de 1964, durante os anos de chumbo, os mais ferozes dos vinte e um anos da ditadura.

Friso os anos de chumbo para excluir o grupinho que debutou no movimento estudantil no início da década de 1980 e posa de líder durante os “tenebrosos anos da ditadura militar”.

Ora, de 1979 a 1985, a ditadura não era nem sombra do que foi entre 1968 (13 de dezembro) e 1978 (31 de dezembro). O AI-5 não estava mais vigente e o país caminhava a passos ainda lentos mas firmes em direção à redemocratização. Ainda estou aqui, em sua parte mais dolorosa, a prisão e a morte do ex-deputado federal Rubens Paiva, narra e descreve parte dos, aí sim, tenebrosos anos de chumbo.

Quanto à democracia, é preciso construí-la a cada dia com os tijolos da liberdade e a argamassa da coragem para enfrentar os ditadores de opereta. Sem isso, ela, a democracia, sucumbe. E às vezes sem grande estardalhaço. Como ocorreu entre os anos Castello Branco e Costa e Silva, quando as liberdades individuais foram sendo suprimidas lenta e silenciosamente, conforme brilhantemente expôs Élio Gaspari em obra magistral.

O prêmio, merecido, de Fernanda Torres, tal qual a mãe uma belíssima atriz, é pela atuação convincente no filme Ainda estou aqui, baseado em livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Dizer outra coisa, politizando a premiação, é desmerecer a atuação dela.

O filme é muito bom e conta história razoavelmente conhecida, por sinal tocada tangencialmente em Feliz ano velho, livro escrito pelo mesmo Marcelo Rubens Paiva (1982) e que também virou filme (1987).

Um dos nossos mais brilhantes intelectuais e homens públicos, Roberto de Oliveira Campos, ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos e na Inglaterra, ex-senador e ex-deputado federal, ex-ministro do Planejamento e um dos fundadores do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, dizia que “o doce exercício de xingar os americanos em nome do nacionalismo nos exime de pesquisar as causas do subdesenvolvimento e permite a qualquer imbecil arrancar aplausos em comícios.”

A premiação de Fernando Torres explica um pouco a nossa relação de ódio (e amor) com os Estados Unidos. O sucesso de Torres é justamente festejado; tivesse perdido, estaríamos falando sobre a decadência da sociedade norte-americana, como não reconhecem o nosso talento, etc, etc e etc. Sai uma matéria elogiosa ao governo Lula na mídia dos Estados Unidos, festejamos; a notícia é negativa, os Estados Unidos boicotam o governo do presidente que veio do povo, querem espezinhar nossa soberania e por aí vai.

A relação é neurótica, tendo em vista importarmos muito de ruim do que lá é produzido, com o wokismo, e torcermos o nariz para as causas que explicam o sucesso que os ianques atingiram, como a liberdade individual, o incentivo à capacidade empreendedora (por sinal fruto da liberdade individual), entre outros.

O intelectual de suvaco diria: “Vamos ressignificar a premiação de Fernando Torres. Há nela muitas camadas que precisam ser analisadas, como o empoderamento e a resiliência da mulher. O esforço em analisar a crescente influência da mídia oferece uma interessante oportunidade para verificar as diretrizes de desenvolvimento para o futuro”.

É “o contexto da alternância da evolutiva”, como diz meu amigo Sílvio Freire, lá de Florânia, ironizando a mania de falar bonito para nada dizer.

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