O grande passo

por Sérgio Trindade foi publicado em 06.jul.25

Dizem que Ildo Pestana nasceu de uma mulher que cultuava as estrelas e de um coronel do exército que gastava o seu tempo livre pescando no Rio Remígio. Não há documentos confiáveis sobre sua chegada ao mundo, apenas relatos de parteiras que juram ter visto o bebê abrir os olhos e dizer: “Eu serei Presidente da República.”  Desde cedo, ficou claro, para os seus acólitos, que Peçanha era um homem que não cabia no Tempo e na Terra – e talvez por isso tenha tentado moldá-los à sua medida.

Em São Cipriano, cidade onde nasceu, os tambores começaram a bater na manhã em que ele se autoproclamou Presidente Vitalício. A população ouviu o som surdo e soube que o delírio havia vencido a razão. Pestana, advogado com boa banca, sentou na cadeira presidencial com a altivez de uma onça e a manha de uma raposa. Vestia paletó especialmente confeccionado para a ocasião. Chamava a si mesmo de Rei e não Presidente, e enviava cartas aos mais importantes soberanos do mundo. Queria ser como Napoleão Bonaparte, amado pelas tropas e pelo povo e temido pelos inimigos.

Os inimigos mais renhidos diziam que Peçanha comia corações e cérebros humanos – literalmente. E que dançava com os fantasmas dos inimigos que mandara executar. Às terças, assistia filmes sobre Napoleão com os olhos marejados. Às quintas, dava audiências públicas onde adivinhava o passado das pessoas e projetava futuro grandioso para o país. Os puxa-sacos o chamavam de visionário; os inimigos, de louco. Pestana se apresentava como um instrumento divino para purgar o país dos pecados que geraram o subdesenvolvimento.

Teve, oficialmente, apenas uma esposa. Todos sabiam, porém, que Pestana era um garanhão testicocéfalo. Os dedos das mãos e dos pés não eram suficientes para indicar o número de amantes. Eram três fixas. Uma delas, sabia-se, deu-lhe três filhos. Um funcionário do palácio presidencial chegou a dizer que Pestana tinha mais filhos que o Exército tinha de soldados — e havia quem jurasse que um deles nasceu com três olhos. Dos seus descendentes, muitos desapareceram, outros fugiram, outros ainda juram que nunca foram filhos, apenas vítimas.

Juliana Pereira, uma de suas amantes mais notórias, foi encontrada morta e desmembrada. Quem conheceu a relação deles diz que ciúmes ou medo de traição foram os motivos da ordem dada por Pestana. No necrotério, o médico que tentou reconstruí-la vomitou antes de terminar. Pestana foi ao velório e se apresentou, compungido, diante de todos.

Em festas privadas, desfilava com suas mulheres como se fossem suas posses.  Escondia-as depois em palacetes secretos, onde ficavam à disposição de seus caprichos ou fúrias. Uma delas enlouqueceu e passou a falar com os retratos pendurados nas paredes. Outra desapareceu sem deixar sombra nem memória.

Algumas de suas amantes foram dedicadas esposas de alguns de seus ministros ou assessores mais próximos. Pestana tinha predileção por tais conquistas, mas gostava também de assediar esposas de empresários e de trabalhadores comuns.

A cada discurso, a realidade se encolhia um pouco mais. Os ministros sumiam como fumaça. A economia crescia a todo vapor, impulsionada pelos grandes volumes de bens primários e pela atração de mão-de-obra imigrante – de origem europeia e asiática. Comércio e indústria explodiram, até que um problema surgiu: escassez de mão-de-obra.

Pestana não governava sozinho. Auxiliares diziam que ele ouvia vozes vindas do rádio mesmo quando ele estava desligado e que conversava com os ancestrais por meio de uma cabeça de uma onça embalsamada que guardava em seu quarto.

Em 1906, quando a falta de trabalhadores para o comércio e a indústria se fez presente, Pestana ordenou a construção de escolas que formassem trabalhadores. E assim foi feito. Quatro anos depois, já estavam em funcionamento mais de 30 escolas comerciais e industriais em todo o país.

Um dia, Pestana começou a cair. Lentamente, como alguém que escorrega na lama. Depois, rapidamente, com violência. Os generais o temiam, mas também o odiavam, e quando apareceu um novo líder, Jeremias Viegas, cheio de ideias e projetos, pularam do barco de Pestana e se alojaram no camarote de Viegas. Para não ser preso pela nova ordem, Pestana fugiu vestido de padre, com um baú cheio de libras esterlinas, dois papagaios falantes, sua dedicadas esposa e três de suas amantes preferidas.

Homiziou-se no norte da África, onde morreu, gordo, delirante, acreditando ainda ser Presidente, ainda dando ordens, ainda recebendo políticos de seu país. Há quem acredite, entretanto, que Pestana não morreu, que ainda voltará para reconstruir sua grande obra. Porque, como tudo que é feito de pesadelo e pólvora, Pestana nunca foi inteiramente deste mundo. E talvez por isso, como uma má profecia, ele nunca tenha realmente partido.

E se não partiu de vez, nem mesmo voltará – seguirá presidindo o país, a nação. Ou reinando, como ele dizia.

Peçanha, um D. Sebastião tropical, reinará de novo. Para glória ou desgraça do seu povo? Um dia saberemos.

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