Barroso: da clandestinidade ao plenário supremo
Nos anos 1970, em plena ditadura militar, o jovem Luís Roberto Barroso ainda não era ministro, nem excelentíssimo, tampouco uma das encarnações da consciência moral da República. Era militante universitário – dos bons, dos que queimavam a sobrancelha nas noites clandestinas da Tribuna da Imprensa, redigindo manifestos com cheiro de tinta e utopia. Estudante da Faculdade de Direito da UERJ, atuou em centros acadêmicos e na imprensa alternativa, trincheiras de resistência intelectual contra um regime que proibia mais do que permitia. A motivação vinha de longe, da morte de Vladimir Herzog, do amordaçamento do Congresso Nacional, da perseguição política aos que ousavam pensar diferente. Ele era parte de uma juventude que, a seu modo, queria enterrar o autoritarismo de vez – com discursos, panfletos, assembleias e passeatas.
Em 1980, após o atentado à sede da OAB que matou uma secretária, Barroso participou de uma marcha contra o regime. Na ocasião, foi certamente um dos que bradou com a energia de um jovem convencido da História: “Vai acabar… a ditadura militar!”. Acabou. Só que a história não terminou aí – e Barroso também não parou por ali. Sua militância, então alinhada com os primeiros movimentos que culminariam na fundação do Partido dos Trabalhadores, deixava claro: aquele garoto era sério, aplicado, com fé no verbo e nos princípios.
Aos que duvidam, há registros. Em um depoimento disponível no site da Faculdade de Direito da UERJ – http://www.direitouerj.org.br/2005/fdir70/index.htm – o próprio ministro relembra episódios que beiram o anedótico. Dois colegas da organização estudantil foram chamados a depor no famigerado Departamento de Polícia Política e Social (DPPS), e Barroso foi procurar apoio do então diretor da faculdade, Oscar Dias Corrêa. A resposta foi um retrato da época: “Eu não sou comunista! Eu não gosto de comunista! Vocês precisam assumir o que vocês fazem e eu não vou me meter nesse assunto, e não vou ligar coisa nenhuma!”.
Numa outra ocasião, flagrado com colegas produzindo um jornal alternativo durante a madrugada, foi levado à Polícia Federal. Lá, ouviu a cartilha da época: “Vocês são inocentes úteis do comunismo internacional; o que vocês estão fazendo é antipatriótico. (…) aqui nesse jornal de vocês tem um artigo que diz: ‘Censura, um tema censurável.’ Eu queria dizer para vocês que no Brasil não há censura.” A frase era tão surreal que talvez nem Orwell, aquele de 1984 e de Revolução dos Bichos, ousasse tanto.
Passaram-se as décadas e o comunismo internacional saiu de cena, substituído pela ameaça do fascismo em versão tropical, segundo os novos evangelhos das redes sociais. O regime militar ficou para os livros de história – a quase totalidade inclinada a lamentá-lo e uma parcela a santificá-lo.
O jovem Barroso, antes um figurante bem-comportado da resistência estudantil, tornou-se ministro do Supremo Tribunal Federal. E com isso, passou a integrar o grupo seleto dos que, do alto de suas togas, decretam o que é democrático e o que não é. O Brasil, que saiu de uma ditadura, forjou uma democracia capenga – e nesta democracia que se julga plena, Barroso ocupa o centro do palco.

Imagem feita com auxílio de IA
O que parece faltar nessa travessia é justamente o que aquele garoto do Andaime defendia com tanto fervor: a liberdade plena de expressão, mesmo – e sobretudo – quando o Estado discorda dela. Hoje, a censura não aparece de farda ou com carimbo, mas com votos colegiados e canetadas embaladas em juridiquês. O paradoxo é de envergonhar os cartunistas dos velhos jornais e revistas. O mesmo homem que, nos anos 1970, foi advertido pela PF de que “no Brasil não há censura”, é hoje um dos sócios do comitê que mais insistem em definir o que pode e o que não pode ser dito.
A História, como sempre, tem senso de humor, mas é do tipo ácido. E, às vezes, irônico.