Brasil: o teatro das ilusões perdidas

por Sérgio Trindade foi publicado em 21.ago.25

As revelações recentes da Polícia Federal sobre os diálogos travados entre Jair Bolsonaro e seu filho Eduardo descortinam mais do que a intimidade desastrada de uma família política. São janelas para a forma como o poder é compreendido – e deturpado – no Brasil. Longe da imagem do estrategista ou do estadista, os diálogos recuperados soam como o eco de uma conversa de botequim, misturando bravata e paranoia com forma e conteúdo que beiram o tragicômico. Nada ali remete à construção de projetos de Estado; são, antes, artimanhas de ocasião, movidas pelo medo e pelo instinto de autopreservação e, em certo sentido, não há novidade. Sérgio Buarque de Hollanda já lembrava, em Raízes do Brasil, que nossa tradição política carrega as marcas do personalismo e da cordialidade – entendida não como delicadeza, mas como a primazia dos afetos, das conveniências, dos vínculos pessoais sobre qualquer racionalidade institucional. Quando Eduardo Bolsonaro diz que seus esforços nos Estados Unidos não eram “para dar anistia a todos”, mas apenas “para livrar o pai”, estamos diante da encarnação desse velho traço: a política reduzida ao cuidado da própria família, à lógica da casa, ao círculo íntimo, como se o Estado fosse extensão dos cômodos domésticos.

Esse traço cordial aparece tingido de cores farsescas quando o filho, no calor da conversa, lança insultos ao pai – e o faz não como Édipo desafiando o destino trágico, mas como um personagem de Nelson Rodrigues, que não mede palavras nem pudor, chamando de “cagão” aquele que, sendo capitão, um dia se quis general da nação. É um momento de teatro grotesco: um César imaginário desnudado como um Polichinelo, cujo heroísmo se desmancha diante da bronca filial. Aqui, mais que uma anedota familiar, vemos a tragédia reduzida à comédia, como no avesso de Shakespeare: não é Hamlet diante do espectro do pai, mas Eduardo diante de Jair, jogando à mesa as palavras que, em vez de expor grandeza, revelam miséria. Um colega e amigo indignado disse: “Um cabra que lê um negócio desse vindo do filho e bota panos quentes é um cagão de marca maior”. Completo: “Meu pai arrancaria minha língua com a mão”.

Enquanto os Bolsonaro e seus satélites se engalfinham, o outro polo político não escapa da mesma lógica. Lula e o PT, após duas décadas de poder, pouco fizeram da linguagem do nacionalismo ou da soberania, e sempre mantiveram uma relação desconfiada com os símbolos pátrios. De repente, a bandeira verde e amarela, que até ontem era rechaçada por remeter ao “inimigo”, reaparece como paixão arrebatada, amor tardio de juventude reencontrada. Essa súbita guinada não tem densidade histórica, é mero cálculo político, populismo de ocasião. É como se Macunaíma, o herói sem caráter algum, resolvesse vestir-se de verde e amarelo apenas porque a ocasião o exigia.

Nessa dança, a diplomacia brasileira assume tons de briga de rua. O Presidente da República lança piadas em momentos de crise, o chanceler parece perdido em divagações senis, e todos fingem que o país segue no rumo certo. Mas, como sempre, quando os interesses do grande capital são tocados, o verniz se quebra. Sérgio Buarque de Hollanda já advertia para a instabilidade da conciliação política no Brasil: quando o sistema de favores deixa de satisfazer os negócios, abre-se o caminho para rupturas. Não é por acaso que até o Centrão, tradicional amortecedor das tensões, começa a reagir contra os Bolsonaro, percebendo que o excesso de turbulência ameaça a ordem tácita do toma-lá-dá-cá.

Imagem feita com auxilio de IA

O episódio das pressões de Eduardo junto ao governo Trump ilustra bem esse personalismo travestido de diplomacia. Em vez de defesa de interesses nacionais, o que se viu foi um lobby internacional em nome da salvação paterna, chegando a cogitar sanções e tarifas contra o Brasil como forma de retaliação ao Supremo Tribunal Federal. É a antítese da política de Estado: um filho em missão quase quixotesca, confundindo a pátria com o sobrenome. Aqui, a história se encontra com a ficção: Dom Quixote, ao enfrentar os moinhos de vento, acreditava lutar contra gigantes; Eduardo, ao acionar Trump, acredita enfrentar a tirania do STF, quando, na verdade, apenas rodava a roda do infortúnio familiar.

O que vemos, portanto, é a conjugação de um país em que a política se degrada em performance de baixo nível, e no qual insultos familiares ganham ares de documento histórico. As palavras de Eduardo ao pai não são apenas uma briga doméstica: revelam a falência de uma liderança que se imaginava providencial. Quando um filho acusa o pai de covardia em plena arena pública, não se trata de desavença privada, mas de um sinal de que o mito perdeu o fio da aura. Como na cena dos irmãos Karamázov, de Dostoiévski, em que os laços de sangue se desfazem sob o peso do crime e da vergonha, o que resta é o retrato de uma família em ruína – e, com ela, de um país que apostou suas fichas na ilusão messiânica.

Historicamente, o Brasil já conheceu episódios semelhantes, em que a política se reduz à luta pela sobrevivência pessoal. Durante o Segundo Reinado, quantos não foram os arranjos de gabinete que priorizavam salvar figuras públicas de escândalos, em detrimento do debate sobre a modernização do país? Ou, na República Velha, quando oligarcas e coronéis mobilizavam toda a máquina do Estado apenas para garantir a perpetuação de seus clãs? Sérgio Buarque de Hollanda lembrava que nossa modernidade sempre foi incompleta, marcada pela justaposição entre instituições importadas e práticas arcaicas. O que hoje se revela nos diálogos entre Jair e Eduardo não é senão a versão digital dessa velha contradição: um país que ostenta tribunais, parlamentos e constituições, mas cuja política se resolve em mensagens privadas, injúrias filiais e estratégias improvisadas.

O tom farsesco dessas revelações traz certo ar de comicidade, mas há riscos sérios ao sistema. A tentativa de mobilizar pressões estrangeiras contra instituições brasileiras é sintoma de uma erosão de que vai muito além das bravatas. Quando a política se torna assunto de família, a república se converte em feudo. Quando insultos privados passam a orientar decisões públicas, é o Estado que se apequena. E o presente repete o passado, restando-nos perguntar: até quando continuaremos a confundir a nação com a casa, o governo com a parentela, a pátria com o quintal?

Talvez o episódio sirva de alerta. Entre a tragédia e a comédia, entre Shakespeare e Nelson Rodrigues, entre Dom Quixote e Macunaíma, o Brasil precisa decidir se continuará a rir de si mesmo ou se aprenderá, enfim, a construir um projeto sério de Estado e de Nação. Enquanto isso, seguimos assistindo, perplexos, à série interminável da Família que não soube governar, mas sabe reclamar.

É uma peça de mau gosto, mas cujo palco é o próprio destino nacional.

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