ABC – luto em preto e branco
Meus três ou quatro leitores, o que aconteceu com o ABC neste ano não é futebol, é um tratado de metafísica em chuteiras. É a prova cabal de que Deus, ao criar o mundo, reservou uma gaveta especial para a ironia – e dentro dela colocou o destino do mais amado clube do Rio Grande do Norte.
Sou abecedista por herança genética, hereditária, paterna. Nasci com a camisa alvinegra pregada no corpo o escudo tatuado no coração, sem escolha, como se fosse um gene incurável. Meu pai era abecedista, eu sou abecedista, meus filhos são abecedistas – e, se a biologia permitir, meus netos nascerão com a mesma condenação. Somos, portanto, um clã de sofredores renitentes e, como a moda acadêmica gosta de ditar, resilientes. A cada derrota, é como se o útero da família balançasse de tristeza.
Pois bem: em 2025, o ABC caiu para a Série D. Repito: Série D! A última letra do alfabeto futebolístico tupiniquim, a quarta categoria, o porão do futebol nacional. O clube que já duelou com gigantes no Castelão (rebatizado Machadão e, depois, derrubado) lotado – o Santos de Pelé e Clodoaldo, o Flamengo de Zico e Adílio, o Vasco de Leão e Roberto Dinamite, o Palmeiras de Ademir da Guia e Leão – agora terá de enfrentar times com nomes de açougues e padarias. É o mesmo que pegar um príncipe e obrigá-lo a disputar concurso de lambada na pracinha.
Estejamos certos: o ABC não foi rebaixado por perder demais. Não, seria banal. Caiu porque empatou demais. Foi o time mais diplomático do Brasil. Em 19 jogos, perdeu apenas quatro. Ganhou só duas partidas. Duas vitórias! Isso não é campanha de futebol: é abstinência de vitória. O ABC virou um Gandhi em chuteiras, pregando a paz dos empates. Saiu da Série C não pela covardia, mas pela cordialidade excessiva. Deveria ser indicado pela ONU para arbitrar o conflito entre Rússia e Ucrânia. Garantiria um empate justo.
O estádio Frasqueirão, outrora arena na qual os gladiadores alvinegros destroçavam adversários, tornou-se um cemitério de expectativas. Ali, 17 dos 24 gols sofridos foram engolidos com a naturalidade de quem come pastel de feira frio e engordurado. Jogar em casa virou jogar contra si mesmo. O torcedor abecedista ia ao estádio como quem assiste a um velório: sem esperança, mas com obrigação. Meu pai dizia, antes de me levar a primeira vez ao estádio, em meados da década de 1970, que o ABC era praticamente imbatível em Natal. Hoje, Natal é imbatível contra o ABC.
E quando o clube ainda respirava por aparelhos, surgiu a matemática perversa. Aquela coisa que se transforma em boia de salvação, embora seja necessário nadar até ela. Só um milagre salvaria. Aquelas contas malucas que só o futebol brasileiro é capaz de produzir: vencer os dois últimos jogos, torcer para derrotas alheias, esperar que Plutão voltasse a ser planeta e que a Seleção de 70 ressuscitasse para jogar em nosso favor. Tudo junto. Caso nada disso ocorresse, chamaríamos Deus para entrar em campo e nos redimir. O torcedor, claro, fingia acreditar. Abecedista é crédulo por natureza. Acreditamos em Papai Noel, em Saci-Pererê e até no contra-ataque mortal do nosso time de cabeças-de-bragre.
Eis que chegou o jogo derradeiro. Itabaiana, no Frasqueirão. Era a chance da ressurreição. Pois bem: perdemos de 1 a 0. Um magro e simples gol nos condenou ao rebaixamento. Não houve drama grego, gol contra épico, erro escandaloso do juiz. Foi apenas um 1 a 0 burocrático, insosso, como se o destino tivesse preguiça ou enfado de inventar algo mais cruel.
Diante disso, o abecedista se pergunta: por quê? E a resposta é óbvia, meus três ou quatro leitores. O ABC não foi rebaixado pela bola. Foi rebaixado pela ironia. Porque cair com apenas quatro derrotas é um feito digno do Guiness Book. É como ser expulso da festa por sorrir demais. É a prova definitiva de que o futebol não é lógico, não é racional. O futebol é uma comédia de erros escrita pelo demônio em noite inspirada.
E nós, abecedistas genéticos, assistimos a tudo como atores coadjuvantes de uma tragédia shakespeariana. Há torcidas que choram no rebaixamento. Nós choramos rindo, porque sabemos que o ridículo também faz parte da herança. Somos filhos de um clube que, quando não está brilhando, está tropeçando com estilo.
Penso em meu pai, no céu, balançando a cabeça. Ele, que me levou ao estádio pela primeira vez, me deu a camisa listrada, me ensinou a amar o clube como quem ensina a cartilha e a tabuada. Hoje, eu passo a mesma herança para meus filhos. Eles reclamam, é claro: “Pai, por que escolhemos o ABC?”. Eu respondo com a solenidade de quem cita Homero: “Porque a genética determinou. Vocês já nasceram com a sina do ABC. É como a cor dos olhos: não se muda”.
E que herança é essa?! Uma herança que agora nos coloca diante da Série D. Série D! Onde os gramados parecem pastos com crateras lunares, os estádios não têm refletores e os narradores confundem o nome dos jogadores. É lá que vamos jogar, porque o destino decidiu que o ABC precisava, de novo, desse purgatório. Talvez seja uma penitência pelos anos de glória, ou um aviso de que, mesmo o maior campeão estadual do Brasil, está sujeito ao vexame.
Mas, como bom abecedista, não me iludo. Caímos, sim, mas não morremos. O ABC é como aquela barata que resiste ao chinelo, ao inseticida e ao fim do mundo. Caímos para a Série D, mas já caímos para a Série C antes – e um dia ficamos sem série alguma. E subimos. E cairemos de novo. E subiremos de novo. O ABC é uma fênix com alergia a cinzas.
A grande lição, meus três ou quatro leitores, é que no futebol – e especialmente no ABC – a tragédia é sempre provisória. O vexame é apenas prólogo da glória futura. Talvez, quem sabe, daqui a alguns anos, meus filhos e eu estaremos no Frasqueirão festejando uma subida, e diremos com orgulho: “Vimos o pior, sobrevivemos ao fundo do poço e ainda estamos de pé”.

Imagem feita com auxílio de IA
O ABC caiu, mas o abecedista não cai nunca. Porque ser abecedista não é escolher um time: é carregar um fardo hereditário, uma cruz gloriosa, uma sina que se transmite de pai para filho como uma doença incurável. E, como toda doença incurável, o máximo que se pode fazer é rir dela.
E, convenhamos: se é para rir, que seja com sarcasmo. Afinal, poucos clubes no mundo conseguem ser rebaixados com tão poucas derrotas. O ABC conseguiu. É o fracasso mais brilhante, mais estiloso e mais ridículo da história. Um fracasso digno de herança. E eu, como abecedista genético, estarei aqui para contar essa história. Aos meus filhos, aos meus netos e a qualquer pobre infeliz que se sente ao meu lado num boteco. Porque no fim das contas, o que é o ABC, senão uma tragicomédia em preto e branco?
O ABC é um luto bicolor – alvinegro.