Futebol: Brasil cambaleante
O Brasil sempre olhou e tratou as Eliminatórias de Copa do Mundo como se fosse missa de domingo: obrigação, rotina, liturgia. Tudo com risco zero. A verdade é que o país do futebol sempre acreditou (e ainda há quem acredite) que tinha (tem) passaporte carimbado, visto eterno, cadeira cativa no banquete organizado e gerido, a cada quatro anos, FIFA. Mas cada campanha tem sua tragédia e sua farsa, seu ato de teatro encenado nos gramados da América do Sul.

Imagem feita com auxílio de IA
Na Copa de 1970, por exemplo, a Seleção ressuscitou depois do apagão de 1966. O vexame na Inglaterra foi tão profundo que parecia que o Brasil havia sido amaldiçoado. Aí veio João Saldanha, briguento, comunista, genioso e genial e, em seis jogos pelas Eliminatórias, atropelou. Meteu seis vitórias, seis marteladas de fé. O Brasil classificou-se como se fosse a própria encarnação da ressurreição. No fim, Saldanha brigou com o regime dos generais e saiu, entrou Zagallo, e o resto foi a glória em solo mexicano. Mas a verdade é que nas Eliminatórias o Brasil já era imortal.
Anos depois, nas Eliminatórias para a Copa de 1978, tivemos o Brasil militarizado de Cláudio Coutinho, uma Seleção que parecia saída de academia de oficiais de forças militares especiais. Tudo medido em cronômetro, batimento cardíaco, planilha. O time parecia fazer ordem unida. E a classificação veio, claro, contra Colômbia e Paraguai, sem graça, sem drama, mas com a pompa de desfile de 7 de setembro. Passamos, mas não convencemos. Em 1982, com Telê Santana, voltamos à poesia: Zico, Sócrates, Cerezo, Junior, Reinaldo e companhia fizeram das Eliminatórias contra Bolívia e Venezuela uma prévia da ópera trágica que seria a Espanha. Classificação sem suor, futebol de orquestra sinfônica. O Brasil entrou em campo como maestro regendo Beethoven ou Mozart em pleno Maracanã. Mas todos sabem como o concerto acabou, em gramados espanhóis: Paolo Rossi três vezes e um silêncio tumular no hoje finado Estádio Sarriá, em Barcelona.
Em 1986, ainda com a ressaca de 82, o Brasil passou por Bolívia e Paraguai sem problemas. Sócrates e Zico já não tinham o vigor de antes, mas jogaram o suficiente para a garantir o passaporte para o México. Foi mais um ritual burocrático, a Seleção parecia jogar em câmera lenta, e o país inteiro fingia acreditar na nossa grandeza. Em 1990, com Sebastião Lazaroni, o Brasil classificou-se contra Chile e Venezuela, mas aí era missa de corpo presente. Um futebol sem alma, um 3-5-2 de cartilha italiana, com futebol amarrado e defensivo. O escrete canarinho parecia jogar para agradar fiscais de alfândega. Classificou-se, sim, mas sem um fiapo de encanto. E então chegamos à campanha de 1994, a mais dramática da história. Pela primeira vez sentimos a ameaça real da exclusão. A derrota para a Bolívia no morro, em La Paz, foi uma bofetada inédita, afinal o Brasil nunca havia perdido em Eliminatórias. O torcedor descobriu que a tragédia era possível, que a cadeira cativa podia ser arrancada. Aí veio Romário, o marginal da bola, convocado na última hora, e contra o Uruguai, no Maracanã, fez dois gols e garantiu a vaga. Foi a classificação mais sofrida, mas também umas das mais belas, a antessala da redenção nos gramados ianques.
E assim o Brasil sempre transformava drama em glória, tragédia em apoteose. Só que chegamos ao século XXI e o espetáculo virou farsa montada em vários atos. A Seleção, outrora gloriosamente predestinada, virou caricatura. Nas Eliminatórias para 2022, o Brasil terminou invicto, primeiro colocado. No papel, uma campanha irretocável. Na prática, um velório sem defunto. Vencia sem convencer, acumulava pontos sem alma, empatava sem vergonha. O torcedor via o jogo como quem assiste novela das seis: já sabe o fim e não sente nada. O episódio mais memorável foi uma comédia diplomática: contra a Argentina, em São Paulo, o jogo interrompido pela Anvisa, com fiscais de jaleco invadindo campo, como se fossem atores de pastelão. Oficialmente, a campanha foi perfeita. Extraoficialmente, era um cadáver embalsamado. No Catar, claro, a farsa se revelou: derrota para a Croácia, mais um enterro sem lágrimas.
Mas nada se compara à tragédia farsesca de 2026. Pela primeira vez, o Brasil correu risco real de não ir à Copa. Derrotas em casa, empates humilhantes, olés de vizinhos que antes eram figurantes. A Seleção, outrora religião laica, virou espetáculo de circo mambembe. A torcida, que antes rezava, hoje boceja, dá de ombros. E sempre vem a desculpa: safra ruim. O problema não é só de safra, é de espírito. O Brasil trocou a tragédia pela planilha. A Seleção virou powerpoint, palestra motivacional, algoritmo. Se fosse safra, como explicar a campanha mambembe das Eliminatórias para 2002? E, no entanto, em 2002 ainda tínhamos Romário e tínhamos ainda Rivaldo, Ronaldinho, Juninho Pernambucano, Cafu, Roberto Carlos e, mesmo assim, a campanha foi um vexame. Quase ficamos pelo caminho. O que salvou foi a obsessão, a briga, o drama. Felipão botou ordem no lupanar, e o penta veio.
Hoje, nem isso. Hoje temos dirigentes que parecem personagens de Zorra Total, técnicos domesticados por empresários e jogadores milionários que jogam como se assinassem ponto em repartição pública. Não faltam craques e bons jogadores, faltam coluna vertebral e tragédia. Não falta talento, falta alma. O Brasil de 1970 acreditava no destino. O Brasil de 1982 perdeu, mas morreu de amor. O Brasil de 1994 sofreu até o último minuto. O Brasil de 2002 renasceu do abismo. E o Brasil de 2026? Este é o Brasil que não acredita em nada, que não sente nada, que joga sem fé, sem lágrima, sem drama. É a Seleção que perdeu a tragédia e abraçou a farsa. Um enterro sem cadáver, uma missa sem padre, um espetáculo sem aplauso.
O Brasil, meus três ou quatro leitores, trocou a epopeia pelo powerpoint. E se antes o torcedor chorava diante do rádio ou da televisão, hoje ele troca de canal para ver reality show. Eis o epitáfio: as Eliminatórias de 2026 não são só um fracasso esportivo, são o fim de uma religião. A Seleção deixou de ser tragédia para ser piada de comédia chinfrim. E o país, que já foi palco de milagres, agora assiste a sua própria caricatura. O futebol brasileiro, antes uma tragédia grega, hoje é farsa de circo miserável.