Natal apatinetada

por Sérgio Trindade foi publicado em 25.set.25

Em Natal, a tragédia não desce de helicóptero, não veste toga, não carrega espada. Aqui, a tragédia usa capacete colorido, se equilibra em duas rodinhas elétricas e se apresenta com a pompa de uma invenção francesa trazida em contêiner. A prefeitura, inflada de delírio messiânico, anunciou: “O futuro da mobilidade urbana chegou!”. E o futuro, meus três ou quatro leitores, era um patinete.

Isso mesmo, um patinete, esse brinquedo de classe média importado, que em Paris serve para executivos de gravata e, em Natal, virou caricatura de si mesmo. O patinete foi lançado como se fosse a encarnação de Copenhague no meio do Alecrim. O resultado? Uma tragicomédia potiguar que faria rir até o mais sisudo dos coveiros.

Imagem feita com auxílio de IA

Primeiro ato: o senhor engravatado que ousou atravessar a Prudente de Morais sobre o patinete, como um Moisés de segunda categoria, abrindo o Mar Vermelho do engarrafamento. O trânsito, acostumado a ônibus enfumaçados e kombis sem farol, parou em transe. Não era modernidade. Era um delírio cívico, uma alucinação de asfalto. Em Natal, a loucura não é doença: é cidadania.

Segundo ato: três rapazes, mais um isopor de cerveja e uma caixa de som, comprimidos num único patinete, ziguezagueando pela Via Costeira como quem dirige a própria biografia rumo ao desastre. Era o Brasil em uma cena: irresponsabilidade, música alta e álcool. Um buraco poderia tê-los engolido como a terra engole os justos. Mas o povo aplaudiu. A multidão sempre aplaude o suicídio quando ele tem cara de carnaval.

Terceiro ato: o turista europeu. Pobres estrangeiros! Eles chegam cheios de fé na, digamos, ousadia tropical. Não sabem que aqui ousadia não é virtude, é sentença. O vídeo rodou como poema do caos. O homem deslizando com elegância, até que um buraco ancestral – verdadeiro brasão de Natal – o engoliu. Caiu como caem os heróis: sem dignidade, mas em alta definição.

Quarto ato: o ladrão de patinete. Eis o gênio trágico do improviso. O sujeito decidiu levar o veículo para casa, achando que seria mais prático do que esperar ônibus. Mas o patinete, ingrato e tecnológico, desligou sozinho ao cruzar os limites digitais. Foi empurrado de volta pelo próprio ladrão, sob risos de desconhecidos. O povo riu do ladrão, e riu de si mesmo. Porque todo natalense já empurrou um sonho que morreu antes da esquina.

Quinto ato: o vereador, um D. Quixote de subprefeitura, montou no patinete diante das câmeras, erguendo a voz: “Este é o futuro da mobilidade urbana!”. Andou dez metros. Dez. E o futuro encontrou o passado e o presente, mais buraco. Tombou como tombam os discursos, na primeira lombada. O vídeo correu WhatsApp afora. Tudo abafado: “Questão de estabilidade institucional”. Eis a política brasileira: uma queda cortada na edição.

Sexto ato: a velhinha católica. Fez o sinal da cruz antes de subir no patinete. Rezou um terço sobre rodas, proclamou depois: “Foi Nossa Senhora quem guiou!”. Mentira piedosa. Quem guiava era o medo. Mas a cidade acreditou, porque Natal precisa de milagres. Milagres com bateria recarregável e manual de instruções em inglês.

Sétimo ato: a farsa obscena. Nas imediações da Salgado Filho com a Antônio Basílio, alguém vestiu uma fantasia de pênis e circulou de patinete. Eis o símbolo perfeito: a modernidade ejaculando na cara do contribuinte, sem cerimônia e sem aviso.

Eis a ópera-bufa natalense. O patinete não reduziu engarrafamentos, não democratizou transporte, não modernizou nada. Só escancarou nossa sina: o improviso, o buraco, a gargalhada nervosa. O patinete é o epitáfio eletrônico de uma cidade que jamais terá metrô, monotrilho ou sequer um ônibus pontual. Terá, sempre, brinquedos de feira vendidos como futuro.

O natalense não anda de patinete. O natalense tropeça no patinete. O natalense cai do patinete. O natalense furta e rouba o patinete e devolve, humilhado, quando a bateria se esgota. E a cidade, plateia fiel de sua própria ruína, aplaude a queda.

Porque em Natal, meus três ou quatro, até a modernidade chega atrasada, emperrada, desligada no meio do caminho. E quando finalmente chega, não salva ninguém. Só nos dá mais uma piada para contar na fila do ônibus que nunca passa.

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