Homo-marsupialis: uma invenção brazuca
O Brasil não pode deixar de se orgulhar de algumas de suas mais prestigiosas criações, o homo-marsupialis, sobre as quais os teóricos devem se debruçar. O termo não foi criado por mim, mas por um dos meus três ou quatro leitores, o advogado, amigo e colega dos bancos universitários, Francisco Ivo. Dá tese ou ensaio, no estilo do homem cordial, do meu xará Sérgio Buarque de Hollanda.
Usina de paradoxos, o Brasil investe como rico e entrega como pobre. Gasta 6% do PIB em educação, acima da média da OCDE, mas ostenta resultados de submundo. No Pisa de 2018, ficamos em 57º em leitura e em 66º em matemática. É como pagar champanhe francês e receber cachaça de garrafão. A cada governo — Lula, Dilma, Temer, Bolsonaro e Lula outra vez — repetiu-se o mesmo espetáculo: a educação foi tratada como discurso de palanque, enquanto a prioridade real era outra. Não formar cidadãos, mas fabricar dependentes.
Quadro 1 – Gasto em Educação x Desempenho (2018, OCDE – Pisa)
Indicador | Brasil | Média OCDE | Posição Brasil |
Gasto em educação (% do PIB) | 6% | 4,9% | xxx |
Leitura (Pisa) | xxx | xxx | 57º |
Matemática (Pisa) | xxx | xxx | 6º |
Fonte: OCDE – Pisa 2018
A fórmula é simples, quase infantil: aumenta-se a carga tributária, inventam-se bolsas para todo tipo de carência, e o povo, em vez de aprender a andar, é colocado no bolso do Estado. Surgiu daí o espécime sociológico do nosso tempo: o homo-marsupialis, o brasileiro marsupial, carregado como filhote de canguru, confortável na bolsa governamental. Nos últimos vinte anos, a educação brasileira foi vendida como prioridade absoluta. Era uma ladainha diária. Lula dizia que o país tinha de virar uma “pátria educadora”; Dilma repetiu o bordão como quem recita rosário; Temer fez pose de gestor racional, mas cuidou de sobreviver ao processo de impeachment alheio e ao próprio. Bolsonaro, que enxergava “doutrinação comunista” em qualquer livro de ciências, transformou o Ministério da Educação em picadeiro de trapalhadas. Lula, de volta, reacendeu a cantilena da educação como salvação nacional.
Enquanto isso, os números continuaram desgraçados. O ensino médio ostenta evasão de 15%, e 27% da população adulta é analfabeta funcional, segundo o Indicador de Analfabetismo Funcional (INAF). Em outras palavras: 1 em cada 3 brasileiros não consegue interpretar corretamente um bilhete de ônibus. É o retrato do fracasso.
Quadro 2 – Qualidade Educacional (2022, INAF e Inep/Saeb)
Indicador | Resultado Brasil |
Analfabetismo funcional (adultos) | 27% |
Evasão no ensino médio | 15% |
Alunos com nível adequado em matemática (Pisa) | 10% |
Fonte: INAF 2022; Inep/Saeb
Mas se a escola não cumpre seu papel, o Tesouro assume. Programas de transferência de renda se tornaram o verdadeiro currículo nacional. O Bolsa Família, em sua versão original, atingiu 14 milhões de famílias em 2014. No auge da pandemia, com o Auxílio Emergencial, foram 68 milhões de beneficiários. É meio Brasil na fila. A “pátria educadora” virou pátria credora, com o Estado como caixa eletrônico permanente.
Quadro 3 – Programas Sociais (2003–2020, Ministério da Cidadania/Ipea)
Programa/Período | Número de Beneficiários |
Bolsa Família (2014) | 14 milhões de famílias |
Auxílio Emergencial (2020) | 68 milhões de pessoas |
Fonte: Ministério da Cidadania; Ipea
A lógica é cruel: um cidadão instruído poderia exigir serviços públicos decentes, cobrar políticos, compreender planilhas orçamentárias. Já o homo-marsupialis agradece de cabeça baixa, canguru de bolso cheio, sem ousar questionar quem o alimenta. É a mais perfeita estratégia de controle social já inventada por nossas elites políticas. Nada disso sai de graça. A carga tributária brasileira passou de 25% do PIB nos anos 90 para 33% em 2022. O brasileiro paga imposto como sueco e recebe serviço como sudanês. O cidadão se endivida, mas o governo posa de benfeitor com dinheiro que não é dele. É como se o Estado assaltasse o contribuinte com uma mão e distribuísse esmolas com a outra, exigindo gratidão pela violência.
Quadro 4 – Carga Tributária Brasileira (1990–2022, Receita Federal/PNUD)
Ano/Período | Carga Tributária (% do PIB) |
Década de 1990 | 25% |
2022 | 33% |
Fonte: Receita Federal; PNUD
O Brasil conseguiu inventar o masoquismo fiscal. O sujeito paga caro para apanhar. Paga mais para não receber. Paga para que o filho decore meia dúzia de palavras no Enem e saia da escola sem saber resolver uma regra de três. Ao longo de cinco governos, a Escola foi usada como vitrine de marketing. Criaram o Fundeb, multiplicaram universidades e institutos federais, mas a qualidade não acompanhou a quantidade. Construíram campi no meio do mato, mas deixaram professores sem formação decente. Estatísticas mostram que apenas 10% dos alunos brasileiros alcançam nível satisfatório em matemática no Pisa. O resto se perde em fórmulas que nunca compreendem. É a velha mania nacional: preferir o prédio à cabeça. Construímos escolas, não aprendizados. O tijolo vale mais que o cérebro. A criança sai alfabetizada aos trancos, o adolescente larga o ensino médio, para que o adulto vira eleitor satisfeito com os caraminguás, via assistencialismo, que recebe todo mês.

Imagem feita com auxílio de IA
Nada disso é acaso. O modelo educacional brasileiro é projeto de poder – e tem muitos sócios, incluindo gestores educacionais. Um povo educado teria a ousadia de exigir menos impostos e mais retorno. Um povo ignorante, anestesiado como o homo-marsupialis, aplaude qualquer migalha. Lula sabe disso, Dilma soube, Temer fingiu não saber, Bolsonaro explorou e Lula novamente capitaliza. Veja o cinismo: os governos vendem a ideia de que a bolsa é um degrau para a autonomia e independência. Na prática, transforma-se em algema dourada. Poucos escapam. O ciclo se retroalimenta: o pai dependente gera, por vezes, o filho dependente, que frequenta uma escola onde seis em cada dez alunos não entendem o que leem, segundo o Saeb. O resultado é previsível: gerações inteiras de analfabetos funcionais que agradecem a ajudinha do governo com fervor religioso.
Periodicamente, surge o debate sobre reforma do ensino médio, currículo, BNCC, métodos pedagógicos. São discussões sofisticadas, travadas em seminários de Brasília e outros centros, mas que não chegam à sala de aula da periferia. Ali, o professor mal treinado enfrenta turmas superlotadas, sem biblioteca, sem laboratório, sem internet – e com violência corroendo tudo pelo pé. O aluno aprende a bater ponto (e recebe bolsa para isso, um tal de Pé-de-Meia), não a pensar. No fim, a escola é um depósito de corpos que serve apenas para legitimar a distribuição de bolsas e auxílios. O homo-marsupialis frequenta a aula porque o programa social exige frequência mínima. Vai à escola para garantir o dinheiro, não para aprender.
O Brasil dos últimos cinco governos construiu uma criatura adaptada à perfeição. O homo-marsupialis não reclama, não exige, não se emancipa. Vive no bolso do Estado, protegido da fome, mas condenado à ignorância. É a vitória do paternalismo sobre a autonomia. O país criou um modelo de ilusão fiscal em que todos pagam muito e recebem pouco. Apanhamos do governo agradecendo e pedindo mais.
Os números não mentem: 27% de analfabetos funcionais, evasão escolar acima de 15%, carga tributária de 33% do PIB, gasto em educação sem retorno, milhões de famílias dependentes de bolsas e auxílios. Eis o retrato. Não se trata de acaso, mas de método. Enquanto o discurso oficial fala em “formar cidadãos críticos” e em escolas “socialmente referenciadas”, o que se produz é massa dócil, treinada a depender da generosidade governamental. O Brasil não educa e nem doutrina, adestra. E o homo-marsupialis é o símbolo acabado de um processo no qual um povo inteiro é carregado no bolso de governantes que sorriem como pais protetores, mas agem como cangurus predadores.