O Caso Celso Daniel: o documentário apórico do Globoplay

por Sérgio Trindade foi publicado em 29.set.25

Alvejado pelo mosquito da dengue, estive afastado do trabalho por três dias e dos livros outro tanto, tal a falta de apetite para a leitura. Gastei o tempo assistindo filmes e maratonando séries, entre as quais a série documental O Caso Celso Daniel, do Globoplay, lançado em 2022.

O resultado do trabalho do Grupo Globo é um produto típico da emissora que a gerou: esmero técnico, estética de primeira linha, narrativa habilidosa, mas impregnado daquela velha mania de fingir neutralidade, quando há escolhas editoriais pesadíssimas. Quem assiste à série não recebe respostas, mas um embrulho elegante de dúvidas, contradições e omissões cuidadosamente embaladas para dar ao espectador a sensação de que está diante de uma investigação equilibrada. Basta, porém, rasgar o invólucro para perceber que o equilíbrio é apenas a mais refinada forma de desequilíbrio.

Imagem feita com auxílio de IA

O caso, é suficientemente conhecido, não exige reconstituição minuciosa. A série do Globoplay não resolve nada disso, e, no fundo, talvez nem queira resolver. Sua virtude e seu defeito são os mesmos: oferecer todas as versões, inclusive as mais disparatadas, sem jamais dizer claramente o que é consistente e o que é fumaça.

Em janeiro de 2002, Celso Daniel, prefeito de Santo André, figura importante do PT e cotado para voos maiores dentro do partido, foi sequestrado e brutalmente assassinado. O corpo apareceu dias depois com oito tiros, e até hoje não há consenso sobre o que, de fato, aconteceu. A versão oficial da polícia paulista é a de crime comum: um sequestro mal conduzido por uma quadrilha de baixa extração, versão entretanto que jamais convenceu a família do prefeito, parte da opinião pública e muito menos a oposição política que, desde então, encontrou no episódio uma fonte inesgotável de munição contra o PT. .

Tecnicamente, a produção, dividida em oito episódios bem amarrados, é irrepreensível. As reconstituições dramatizadas são bem feitas, as imagens de arquivo foram selecionadas com cuidado e a trilha sonora  dosa suspense sem cair no grotesco. A direção de Marcos Jorge sabe construir narrativa, conduzindo o espectador com ritmo e a cada episódio um fio novo é puxado, mantendo o interesse aceso. Há, inclusive, momentos de sofisticação estética, como o uso de animações para ilustrar situações em que não há imagens de arquivo disponíveis. É o tipo de trabalho em que se percebe o investimento e a competência. Mas é na substância que começam as questões mais delicadas. A escolha de entrevistados, por exemplo, revela muito. Estão lá delegados, promotores, jornalistas, familiares, políticos, advogados, todos dispostos a defender sua versão, e o peso dado a cada fala não é neutro. A série concede o mesmo espaço dramático para a versão oficial e para as versões conspiratórias – e, ao fazer isso, cria a impressão de que todas têm a mesma densidade factual. Não têm. A narrativa iguala quem apresenta provas processuais a quem oferece apenas suspeitas ou teorias de bastidores. A isenção, aqui, é mais teatro do que realidade. É a velha estratégia: em vez de escolher um lado, a opção é fingir que todos os lados são igualmente plausíveis, e assim escapar da acusação de partidarismo, mantendo, na prática, a confusão no ar.

É impossível não notar também quem não está presente. Lula, por exemplo, não aparece em entrevistas. A justificativa oficial foi a pandemia, agenda, falta de tempo. Pode ser. Mas é evidente que sua ausência fragiliza a narrativa, porque Lula era, à época, o líder inconteste do PT, pela quarta vez seguida candidato a Presidente da República e uma figura próxima de Celso Daniel. Não ouvi-lo significa abrir uma lacuna imensa, e a série tenta compensar com imagens de arquivo. O resultado é artificial: ficamos com a sensação de que ouvimos todo mundo, menos quem realmente importava. Outras figuras centrais, como José Dirceu, também estão pouco presentes. Quando um documentário se propõe a revisitar um caso e ignora depoimentos de protagonistas, está tomando uma decisão editorial. E a decisão, aqui, foi clara: melhor não correr riscos com entrevistas que poderiam dar declarações incômodas.

As omissões não param aí. A série toca no tema das mortes subsequentes de pessoas ligadas ao caso (testemunhas, investigadores, políticos), mas o faz de modo quase asséptico. Quem conhece o assunto sabe que esses óbitos em cadeia alimentaram as teorias conspiratórias que até hoje circulam. A produção, no entanto, trata isso como se fosse mera coincidência, um detalhe. É uma abordagem típica de quem quer parecer equilibrado, mas acaba soando complacente. Ao não confrontar com firmeza a pergunta óbvia – por que tantas mortes em tão pouco tempo? –, a série esconde mais do que revela. A Globo parece ter medo de ser acusada de alimentar “narrativas da direita” e, por isso, opta por tratar a questão com luvas de pelica. Resultado: o espectador percebe a hesitação, e a hesitação mina a credibilidade.

Outro ponto é o uso político do caso, ontem e hoje. A série admite, em alguns momentos, que o assassinato de Celso Daniel virou arma eleitoral, e ainda é usado como símbolo de tudo o que há de podre na relação do PT com o poder. Mas essa admissão vem sempre acompanhada de ressalvas: a ideia de que há “exploração política” quase sempre é apresentada como se fosse algo menor, uma distorção externa, e não parte da realidade objetiva. Ora, negar que o caso teve impacto direto na imagem do PT é uma ingenuidade. Mais do que isso: o caso, até hoje, é lembrado em debates públicos justamente porque encarna, na mente de muitos, a suspeita de que o partido nasceu abraçado a esquemas ilícitos. O documentário toca nesse nervo, mas com uma pinça. De novo, é a estética da isenção, que confunde cuidado com covardia.

Um aspecto curioso é como a série, ao tentar dar espaço a todas as versões, acaba reforçando a tese de que não existe verdade possível. A mensagem subliminar é esta: não adianta procurar, o caso é indecifrável. Isso, por si só, já é uma posição política. Porque, quando se diz que não há verdade, quem se beneficia é sempre o poder estabelecido, aquele que prefere a dúvida eterna à revelação incômoda. No fundo, o Globoplay entrega ao público uma narrativa que termina em suspensão: não sabemos, não saberemos e talvez nunca possamos saber. É uma conclusão que conforta quem não quer mexer em vespeiro.

Comparado a outros documentários internacionais sobre crimes políticos, O Caso Celso Daniel fica no meio do caminho. Lá fora, quando a Netflix ou a HBO pegam um caso espinhoso, vão até o fim: pressionam autoridades, expõem contradições, apontam diretamente quem mente e quem fala a verdade. Aqui, temos um jornalismo mais tímido, que prefere sugerir ao invés de afirmar. É claro que há mérito em não cair no sensacionalismo barato, mas há também a sensação de que o espectador foi enganado: acompanhou oito episódios para, no final, ouvir um sonoro “não sabemos de nada”. O documentário, assim, vira entretenimento mais do que investigação. Serve para prender a atenção, mas não para esclarecer.

Há até momentos em que a produção arrisca um pouco mais. Quando confronta depoimentos divergentes de promotores e delegados, por exemplo, consegue mostrar que a versão oficial tem lacunas evidentes. Mas, em vez de insistir nessas contradições até o fim, prefere cortar para outro entrevistado, mudar de assunto, abrir nova trilha. É a técnica do desvio: em vez de esmiuçar uma incoerência até desmascará-la, o roteiro joga mais uma voz na roda, e assim mantém o clima de dúvida. É narrativa de thriller, não de apuração jornalística. E aí entramos no campo da intenção. O que a Globo queria com esse documentário? Reabrir o caso? Pouco provável. Dar ao público uma resposta definitiva? Impossível, até porque, vinte anos depois, dificilmente surgirão provas novas. O objetivo foi outro: resgatar um episódio emblemático, mantê-lo vivo no imaginário coletivo, mas sem comprometer a emissora com uma versão que pudesse desagradar. Foi, em suma, um exercício de equilíbrio político: agradar à audiência que adora um mistério policial, sem irritar demais os amigos poderosos. É jornalismo, sim, mas jornalismo domesticado.

Do ponto de vista do impacto cultural, a série é relevante porque devolve o assunto ao centro do debate. Em tempos de polarização extrema, era inevitável que cada campo ideológico usasse o documentário a seu favor. Para a direita, a mera lembrança do caso já serve de munição: mostra que o PT sempre esteve envolto em lama. Para a esquerda, a série é útil como argumento de que nada jamais foi provado contra o partido, e de que as suspeitas não passam de exploração midiática. O Globoplay, conscientemente ou não, alimenta os dois discursos. É como se a série tivesse sido feita para ser citada por todos, cada um escolhendo a parte que lhe interessa. Talvez esse seja o grande truque: ser tão ambígua que pode ser usada em qualquer debate.

O Caso Celso Daniel é uma obra bem produzida, mas covarde; faz pose de imparcialidade, mas pratica o relativismo; é impecável na forma, mas frouxa no conteúdo; dá ao espectador a ilusão de estar diante de uma investigação séria, mas no fim entrega apenas o vazio embalado em estética de luxo. Quem procura emoção, encontra. Quem procura clareza, sai de mãos abanando. É um documento do nosso jornalismo contemporâneo: bonito e vistoso, mas incapaz de dizer o que realmente pensa. Talvez seja a exata metáfora do Brasil, um país que adora fingir que não sabe de nada, mesmo quando a verdade está diante dos olhos.

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