A confusão entre política fiscal e política monetária: o equívoco estrutural do discurso político brasileiro
A ministra Gleisi Hoffmann deu declaração sobre a atuação do Banco Central, nos anos Galípolo:
“O economista Armínio Fraga, que já defendeu até o congelamento do salário-mínimo para cortar gastos do governo, agora quer um ‘cavalo de pau’ na política fiscal que ele chama de ‘suicida’. E ainda diz que a Selic a 15% é apenas ‘um sintoma’ da questão fiscal, quando na verdade é a causa principal do aumento da dívida pública.
É bem diferente do que pensa a economista Teresa Ter-Minasian, do FMI, a quem Armínio tinha de prestar contas quando foi presidente do Banco Central. ‘Não acho que o Brasil tenha risco de crise fiscal nos próximos tempos. O que me preocupa é o fato de os juros continuarem ocupando uma parcela muito grande do espaço fiscal’, disse ela ao jornal O Público, de Lisboa.
Nada justifica os juros estratosféricos, muito menos o terrorismo fiscal. Quem hoje fala em crise fiscal e cobra corte de gastos deve ser lembrado do que aconteceu no governo em que Armínio Fraga presidiu o BC: a carga tributária subiu de 26% do PIB para 32%, a dívida pública passou de 35% do PIB para 60% e o país sofreu com recorde de juros reais”.
Já ouvi comentários de bastidores e na imprensa de que “Lula aceita que batam em Galípolo, mas ele mesmo não baterá”. Isto representa uma dinâmica complexa na política econômica do governo, pois embora tenha manifestado total confiança em Gabriel Galípolo, seu indicado para a presidência do Banco Central (BC), o presidente Lula permitiria que outros membros do governo pressionassem o presidente do BC. Não há fonte que confirme a hipótese, mas não devemos fechar os olhos para o fato de que a estocada de Gleisi é uma demonstração que trilha este caminho, muito embora o alvo seja um ex-presidente do BC, e não o atual. Ambos, o ex e o atual, se perguntados sobre o que pensam sobre a situação fiscal e monetária atual, não devem ter grandes divergências.

Imagem feita com auxílio de IA
A manifestação de Gleisi Hoffmann é, vamos e venhamos, apenas uma peça de retórica – não pela clareza, mas pela confusão. Não esqueçamos: ela foi presidente de um partido que há duas décadas participa da condução econômica do país e que conseguiu transformar a distinção entre política fiscal e política monetária num novelo de mal-entendidos.
Tudo o que a ministra imputa a Armínio Fraga (aumento de carga tributária, crescimento da dívida, juros altos) foi reproduzido, com zelo e devoção, pelos governos petistas. Mas a contradição não lhe tira o sono. Há no discurso político brasileiro uma resistência quase teológica a admitir responsabilidades. Se a realidade desmente a narrativa, pior para a realidade.
A fala de Gleisi revela um entendimento precário – e por isso mesmo revelador – sobre o funcionamento das engrenagens econômicas. Quando ela afirma que os juros são “a causa principal do aumento da dívida pública”, demonstra ignorar o básico: o Banco Central não arrecada impostos, não decide o gasto público e tampouco elabora o orçamento da União. Essas tarefas pertencem ao Ministério da Fazenda, hoje comandado por Fernando Haddad, colega de partido da própria Gleisi.
Mas, para boa parte da classe política, o Banco Central é um bode expiatório conveniente: uma entidade técnica, sem voto, que pode ser acusada de insensibilidade sempre que a economia dá sinais de febre. É mais fácil culpar a termômetro do que rever o excesso de gasto público.
A confusão entre política fiscal e política monetária, no entanto, não é apenas um deslize verbal, é o sintoma de uma doença institucional. Desde o pós-guerra, as democracias maduras aprenderam que separar essas duas esferas é condição para evitar crises inflacionárias. O Tesouro decide quanto gastar e onde; o Banco Central decide quanto custará o dinheiro. Misturar as funções é abrir a porta para o descontrole. Estudiosos como Thomas Sargent e Neil Wallace explicaram isso no início da década de 1980 num texto clássico: Some Unpleasant Monetarist Arithmetic (https://www.minneapolisfed.org/research/quarterly-review/some-unpleasant-monetarist-arithmetic). Não há tradução disponível, mas existe um quantidade significativa de textos acadêmicos e jornalísticos que tratam do tema desenvolvido pelos autores.
Para eles, quando o governo gasta sem limite e não se compromete com o equilíbrio fiscal, a política monetária perde poder. O Banco Central pode subir os juros até o teto da Catedral de Brasília, que a inflação continuará firme, porque o problema não está na taxa, mas na falta de confiança. O juro é o sintoma; a doença é fiscal.
Gleisi, porém, inverte o raciocínio. Para ela, a Selic alta “aumenta a dívida”, como se o BC acordasse de mau humor e resolvesse punir o país com um choque de juros. Na prática, acontece o oposto: é a insegurança fiscal, alimentada por déficits persistentes e promessas de gasto ilimitado, que força o aumento dos juros. O mercado, gostemos ou não, cobra caro por financiar governos que parecem não saber o que fazem.
A ministra parece ignorar o conceito de prêmio de risco soberano, estudado por economistas como Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart. Quando o Estado gasta mais do que arrecada e transmite a ideia de que continuará fazendo isso, os investidores exigem retorno maior para emprestar dinheiro. Os juros sobem não por sadismo tecnocrático, mas por autoproteção. É a lógica de qualquer contrato: quem empresta a um gastador inveterado cobra mais caro (https://www.investopedia.com/terms/s/sovereign-debt.asp).
Gleisi também ignora outro pilar da economia moderna: a autonomia do Banco Central.
Desde os anos 1990, o mundo aprendeu que deixar a política monetária nas mãos de políticos é o caminho mais curto para a inflação crônica. Estudos de Alesina e Summers mostraram que países com bancos centrais independentes têm inflação mais baixa e maior estabilidade. É simples: o BC existe para proteger a moeda da tentação populista de usar juros como instrumento eleitoral. Então, meus três ou quatro leitores, quando Gleisi ataca o BC, não defende o povo; defende isso sim, o direito do governo de gastar sem limite e culpar terceiros quando a conta chega. Sua crítica embute um velho vício latino-americano: o de transformar problemas estruturais em dramas morais. Há os juros maus, os rentistas perversos e, do outro lado, o povo bom, vítima de tecnocratas cruéis. A economia, nesse enredo, vira telenovela, e a responsabilidade fiscal, vilã.
Mas a realidade é menos romântica. O país não está em crise porque o BC mantém juros altos; está em dificuldade porque o governo gasta mais do que pode, promete mais do que arrecada e ignora as restrições do próprio orçamento. É o reino da dominância fiscal, quando a política de gastos subordina a política monetária, forçando o BC a reagir para evitar que a inflação fuja do controle.
Nos anos 1980, o Brasil conheceu o resultado disso: a hiperinflação. O Plano Real corrigiu o rumo; houve separação institucional rigorosa entre Tesouro e Banco Central para que a economia se estabilizasse. Desde então, cada tentativa de reverter essa separação terminou em desastre. A memória, porém, é um bem escasso na política, como demonstra a fala da ministra, a qual não é um mero tropeço conceitual, mas o retorno de um pensamento econômico que parece ter parado em 1987. Há, no petismo contemporâneo, uma saudade implícita do Estado onipotente, capaz de imprimir dinheiro, tabelar preços e mandar o BC baixar juros na marra. É saudosismo travestido de justiça social. Há um problema. A matemática, essa reacionária implacável, não tem ideologia. Dívida cresce com gasto descontrolado, não com declarações de intenção. Juros sobem quando o risco aumenta, não quando a ministra reclama. E a inflação, essa senhora que não perdoa governos sentimentais, volta sempre que a disciplina fiscal é substituída por discursos indignados.
Gleisi Hoffmann, ao tentar dar uma lição de economia a Armínio Fraga, acabou revelando a própria carência de fundamentos. Acusou o Banco Central de ser a causa da dívida, quando o BC é apenas o bombeiro tentando apagar o incêndio provocado pela gastança. Criticou a Selic como se fosse instrumento de castigo, quando ela é, na verdade, o termômetro que mede o grau de irresponsabilidade fiscal. Sejamos sensatos: Gleisi confundiu a tesoura com o termômetro e ainda quis dar bronca no enfermeiro. Quem não distingue, estando em posto de mando, gasto de juro devia ser proibido de falar em economia em público.
O fato é que a confusão conceitual virou método. O discurso político prefere a caricatura à complexidade. Se o BC mantém juros altos, é por terrorismo fiscal; se o governo gasta além da conta, é por justiça social. Assim, o país segue num eterno círculo vicioso: quem avisa é acusado de pessimista e/ou de sádico; quem ignora a aritmética posa de humanista.
No fim, o argumento de Gleisi cai por terra justamente porque erra o alvo. Armínio Fraga pode ter muitos defeitos, mas não é ele quem define o Orçamento, nem quem expande despesas obrigatórias, nem quem promete déficit zero enquanto aumenta gasto corrente. O problema, portanto, não é o “cavalo de pau” que Fraga propõe – é o carro desgovernado que o governo insiste em dirigir. E, enquanto Gleisi aponta o dedo para o retrovisor, o país segue acelerando rumo ao penhasco fiscal, com Haddad no volante, Lula no banco de trás e o Banco Central, de cinto apertado, tentando evitar que o tombo seja fatal.