O país do espelho duplo
O texto que ora escrevo nasceu d’outro, a saber, Brasil – entre dois bois e nenhum caminho, publicado na última terça-feira (07 de outubro) no Diário do RN.
***
Há quem diga que o Brasil vive de paixões políticas. É lenda. O que temos é um vício pela repetição. Somos um país que gira em torno de si mesmo, condenado a andar em círculos, como carro de boi emperrado na lama — e só dois bois o puxam: Lula e Bolsonaro. Desde 2018, mas também desde muito antes, tudo se resume a esse duelo de sombras. Um duelo que, de tão insistente, já ganhou o peso de fatalidade histórica.
A cada eleição, as placas mudam, os slogans se atualizam, os partidos rtocam de cor e sigla, mas o enredo é o mesmo: lulismo versus bolsonarismo. Dois bois cansados, mas ainda donos do curral. Dois legendas políticas, cada qual com seu rebanho de fiéis. E, entre eles, a nação – perdida no barro do espetáculo.
O curioso é que há duas forças interessadas em borrar as fronteiras entre a direita republicana e a extrema direita. A primeira é a própria extrema direita, que precisa convencer o eleitor conservador de que a moderação é covardia e que o único caminho possível é o do confronto. A segunda, embora em outro tom, vem de setores radicais da esquerda, que também preferem a homogeneização do inimigo. Quanto mais grotesco o adversário, mais fácil é combatê-lo. Ambos precisam do espelho: a direita radical quer ver Lula como o inimigo socialista; a esquerda radical quer ver Bolsonaro como o fantasma fascista. E assim se reconhecem.
O lulismo, como bem apontou André Singer, não é o PT – é um modo de governar o Brasil sem desagradar demais as elites. É o pacto entre a fome e o lucro, com a mediação carismática de um líder que fala a língua do povo e tranquiliza o empresariado. Já o bolsonarismo é a revolta organizada da antipolítica, o grito do ressentimento travestido de patriotismo. Lula distribuiu esperança com o cartão do Bolsa Família; Bolsonaro ofereceu fúria com a bandeira na mão. Um deu ao pobre o direito de sonhar; o outro, o direito de odiar. Ambos descobriram que emoção rende mais voto do que argumento.
Max Weber dizia que há três formas de dominação: tradicional, carismática e legal. O Brasil, entre todas, escolheu a carismática. Lula e Bolsonaro são variações desse tipo ideal; são líderes que se legitimam não por regras ou instituições, mas por uma fé quase religiosa. A política virou missa: uns com o terço vermelho, outros com o verde e amarelo. E, no altar das redes sociais, os fiéis disputam quem tem o santo mais milagreiro. É o carisma como método e como vício.
Aristóteles ensinou que toda forma de governo tem sua corrupção interna. A democracia degenera em demagogia, a oligarquia em tirania. No Brasil, a república transformou-se num plebiscito emocional permanente. Governar virou tarefa menor diante do dever de alimentar paixões. O presidente não fala ao país, prega para os convertidos. Cada gesto, cada discurso, cada live é calibrado para manter acesa a chama da guerra moral. Não há espaço para dúvida. Duvidar é trair.
Em Brasília, o binarismo tomou forma institucional. No Congresso, a pauta divide-se entre quem quer sabotar o governo e quem quer blindá-lo. Nenhum projeto sobrevive sem que se pergunte antes: “Ajuda Lula ou atrapalha Bolsonaro?”. Deputados e senadores orbitam conforme o vento das redes. A moderação é vista como covardia. A política virou torcida organizada, com líderes de bancada que se comportam como técnicos à beira do gramado, gritando contra o juiz e incitando o público.
Nas redes sociais, o fenômeno é ainda mais visceral. Ali, a racionalidade weberiana foi substituída pelo instinto. O lulista militante e o bolsonarista convicto vivem na mesma bolha invertida, na qual a ofensa é argumento e o insulto, aplauso. O é X (ex-Twitter) o Coliseu moderno, o lugar em que os gladiadores da virtude moral se enfrentam sob aplausos digitais. Cada curtida é um voto simbólico; cada cancelamento é um linchamento público. O algoritmo não cria cidadãos, fabrica torcedores.
Nicolau Maquiavel teria material para um tratado inteiro sobre o poder no Brasil. Veria que, por aqui, o príncipe não precisa mais de espada; basta um celular com acesso à internet. Descobriria que o medo continua sendo mais eficaz que o amor – e que a política nacional se move pela manipulação das paixões, não pela razão de Estado. O poder, ensina o florentino, ama o disfarce, e Lula e Bolsonaro, cada um à sua maneira, souberam mascarar a ambição com retórica moral. O primeiro em nome da justiça social; o segundo em nome da moral cristã. No fundo, ambos disputam o mesmo trono: o da narrativa.

Imagem feita com auxílio de IA
Mas o binarismo não se limita à política institucional. Ele se infiltra no cotidiano. Nas universidades, estudantes e professores se dividem entre progressistas e conservadores. Na imprensa, colunistas são lidos não pelo que escrevem, mas por quem atacam. Nas famílias, o almoço de domingo virou campo minado. Até os grupos de WhatsApp tornaram-se arenas ideológicas, onde se disputa não o argumento, mas o pertencimento. O Brasil virou um país de pertencimentos emocionais; a racionalidade, um luxo intelectual.
Enquanto isso, os problemas reais seguem na penumbra. A desigualdade cresce, a educação definha, a Amazônia arde, e a infraestrutura apodrece. Mas a polarização é um espetáculo tão eficiente que distrai até a miséria. É mais fácil discutir se Lula exagerou na fala ou se Bolsonaro exagerou no gesto do que encarar o abismo social que ambos, à sua maneira, herdaram e mantiveram. A política virou drama moral, e o Estado, personagem coadjuvante.
Aristóteles, que via a política como a mais nobre das artes, talvez se espantasse com o que fizemos dela. Para o filósofo, a virtude cívica dependia da moderação, da busca pelo justo meio. No Brasil, o meio virou ofensa. Ser moderado é ser omisso. Ser equilibrado é ser covarde. Vivemos uma inversão ética: o excesso virou virtude, o diálogo virou rendição. E, assim, a república se converte num campo de extremismos travestidos de coerência.
Há, ainda, o componente religioso. O bolsonarismo não é apenas um movimento político, mas uma igreja. Seu altar é a pátria, seus hinos são marchas militares, seus santos, os cidadãos de bem. O lulismo, por sua vez, tem sua própria liturgia: o operário messiânico, o mártir que venceu a elite, o santo da conciliação. Ambos oferecem salvação, cada um à sua maneira. E o eleitor, exausto de promessas seculares, busca refúgio na fé política. Weber, novamente, sorriria amargo: a racionalização da vida moderna terminou em seitas emocionais.
No fundo, esse embate é menos ideológico do que parece. Lula e Bolsonaro são sintomas de uma cultura política fundada na personalização do poder. Maquiavel chamaria de virtù a capacidade de moldar o destino com a força da vontade. Ambos a possuem, um pela astúcia, outro pela audácia. Mas falta a prudência política que modera o ímpeto e equilibra o jogo. O Brasil tem amado os extremos e desconfiado dos meios-termos, vício que, nos últimos anos, agravou-se.
O eleitor não escolhe mais por convicção, mas por negação. Vota contra e não a favor. É a política da raiva e do medo, a mesma que Aristóteles via na demagogia ateniense, quando a cidade se dividia entre os que queriam punir os ricos e os que temiam o povo. A democracia, dizia ele, corrompe-se quando a paixão suplanta a razão. No Brasil, essa corrupção é estética: o debate se faz por gestos, memes, slogans. A substância se perdeu no ruído.
No fim, tudo se resolve em espetáculo. Lula sobe ao palanque e fala com a familiaridade de um avô que já viu de tudo. Bolsonaro, mesmo fora do poder, segue em campanha, prometendo um Brasil que só existe na imaginação de seus fiéis. E nós, os espectadores, seguimos assistindo, na arquibancada, ao duelo dos bois cansados, sem perceber que o carro de boi já parou faz tempo. A roda gira, mas o eixo está quebrado.
Há quem ainda espere uma terceira via, uma clareira entre os extremos. Mas, no Brasil, o centro político é como o cometa Halley: aparece a cada muitas décadas e some sem deixar rastro. Quando surge alguém com discurso ponderado, é logo apontado como isentão, elitista, em cima do muro. A moderação perdeu charme. O país prefere o grito.
E, enquanto isso, o tempo passa. O Brasil de 2025 ainda parece o de 2005: esperançoso e cansado ao mesmo tempo. A diferença é que, agora, a esperança virou mercadoria e o cansaço, bandeira. A política se tornou um eterno retorno, uma coreografia previsível de aplausos e vaias, sem partitura nova, como se o Brasil não tivesse efetivamente dois lados, mas apenas dois espelhos, cada um refletindo a deformação do outro. E entre um e outro, o país real, aquele dos que acordam cedo e não têm tempo de discutir nas redes sociais, continua invisível. É ele quem carrega, no silêncio, o peso das promessas e a descrença das esperas.
Talvez, quando o carro de boi enfim desatolar, nem Lula nem Bolsonaro estejam mais lá para empurrar.