Dinarte Mariz: o sertanejo na tempestade
O sertão potiguar foi terra fértil para o algodão ou a fé e também, para a política, essa cultura de improviso e resistência que fez brotar personagens de certa envergadura. Dinarte de Medeiros Mariz, natural em Serra Negra do Norte, encarna como poucos o político nordestino que atravessou as metamorfoses do Brasil de Getúlio Vargas.
Entre 1930 e 1945, Dinarte viveu o batismo de fogo, a glória breve, o ostracismo imposto e a ressurreição democrática, percurso que, a seu modo, reflete a própria história de uma república convulsionada.

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Filho do Seridó e comerciante de algodão em Caicó, Dinarte Mariz não parecia destinado a grandes feitos públicos. Mas o Brasil de 1930 era um país em rearranjo, com a política do café-com-leite cambaleando e as velhas oligarquias em pânico. A Revolução capitaneada por Getúlio Vargas abriu espaço para os que sabiam farejar a mudança – e Dinarte foi um deles, conforme explicita o artigo Dinarte de Medeiros Mariz (Sistema ADCON).
Dinarte Mariz aderiu cedo à Aliança Liberal, apoiando a chapa Vargas-João Pessoa. A revolta de outubro não o encontrou nas trincheiras gaúchas, mas no sertão potiguar, onde as notícias do entusiasmo revolucionário chegavam em lombo de cavalo. Ainda assim, foi um dos articuladores locais do movimento que depôs o governo de Juvenal Lamartine no Rio Grande do Norte, segundo o estudo de Marlene da Silva Mariz em A Revolução de 1930 no Rio Grande do Norte: 1930–1934.
A vitória da Aliança Liberal rendeu-lhe um prêmio imediato: a Prefeitura de Caicó, que exerceu entre 1930 e 1932, conforme o verbete biográfico do CPDOC/FGV. Em tempos de revolução, ser prefeito não era um ofício, era uma missão de reconstrução em meio a destroços. O Rio Grande do Norte, recém-saído do curto episódio de sua república autônoma, aquela de novembro de 1930, quando tenentes e civis tomaram o poder antes mesmo da chegada das ordens do Rio de Janeiro, vivia entre o fervor reformista e o medo da anarquia. Dinarte, o comerciante que se fizera revolucionário, foi um dos homens de confiança local de um regime que ainda tateava entre o improviso e a imposição militar.
O início foi de entusiasmo, pois o novo regime prometia limpar as teias da República Velha. No entanto, o romantismo liberal deu lugar à burocracia dos interventores federais. Vargas, como se veria, não era o líder que abria espaço, mas o que ocupava todos os espaços possíveis e imagináveis. Dinarte percebeu o rumo das coisas cedo. Quando o entusiasmo revolucionário se transformou em centralismo autoritário, ele trocou o pragmatismo pela convicção. Em 1932, apoiou a Revolução Constitucionalista de São Paulo, movimento que pretendia devolver ao país uma Constituição e uma legalidade que Vargas preferia adiar. A decisão, segundo o Arquivo Biográfico do Senado Federal, custou-lhe caro. Foi preso duas vezes, acusado de conspirar contra o governo que ajudara a erguer. E dali em diante, nasceu um líder forjado na prisão. Dinarte, o sertanejo de fala mansa, tornara-se opositor de primeira hora. A prisão, em tempos varguistas, era uma espécie de diploma político. O Brasil aprenderia isso repetidas vezes nas décadas seguintes, e Dinarte, com sua biografia temperada em cela e calabouço, sairia fortalecido. Ao contrário de tantos chefes locais que recuaram para o silêncio, ele reorganizou-se. Em 1934, ajudou a funda o Partido Popular (PP), segundo o registro histórico do Senado Federal, com o objetivo explícito de combater “a ditadura e o autoritarismo nascente”, iniciativa que o pôs no pequeno mas ruidoso grupo de líderes nordestinos que tentavam criar um espaço de resistência política antes mesmo do fechamento completo do regime.
Era, naquela quadra histórica, um oposicionista peculiar: conservador nos costumes, liberal nas instituições. Lutava contra o comunismo com o mesmo fervor com que combatia o centralismo getulista. Segundo o verbete do CPDOC/FGV, em 1935, Dinarte posicionou-se contra a Insurreição Comunista, apoiando a repressão ao movimento liderado por Luís Carlos Prestes. Opositor ao regime varguistas, estava, ironicamente, do mesmo lado das forças de Vargas. Essa contradição aparente, entretanto, traduzia a coerência da velha elite seridoense. Ordem, propriedade e autonomia local eram os alicerces inegociáveis de sua postura política.
A relação entre Dinarte e Vargas foi uma espécie de casamento mal resolvido. Devoto de primeira hora, no Nordeste, da Revolução de 1930, tornara-se, poucos anos depois, um incômodo dissidente. Quando o golpe de 10 de novembro de 1937 instaurou o Estado Novo, o sertanejo já estava na oposição há alguns anos. O fechamento do Congresso, a cassação dos partidos e o controle militar das províncias colocaram fim à carreira política que mal começara. O ex-prefeito de Caicó recolheu-se à sua terra, retomando o comércio de algodão e ampliando seus negócios agropecuários.
O período de 1937 a 1945 é, para Dinarte, o mais silencioso e o mais formativo. Segundo Larisse Santos Bernardo e Jailma Maria de Lima, em Os caminhos e os desdobramentos da vida, trajetória política e dos discursos e pronunciamentos de Dinarte Mariz (https://revistagalo.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es/edi%C3%A7%C3%A3o-003/07-os-caminhos-e-os-des/), o ex-prefeito usou o ostracismo para consolidar uma rede de aliados e dependentes econômicos no Seridó, combinando paternalismo e eficiência comercial. Enquanto o país era conduzido a golpes de decreto e censura, Dinarte organizava o seu próprio estado novo doméstico, uma rede de influência que ia de pequenos produtores a fazendeiros de médio porte, todos dependentes de sua intermediação econômica e política.
Essa retirada estratégica o salvou. Ao contrário de muitos políticos que se comprometeram com o regime varguista e depois pagaram o preço da desmoralização, Dinarte manteve-se limpo, à margem e, sobretudo, lembrado, tornando-se nesse período um dos maiores comerciantes de algodão do Seridó, com influência sobre cooperativas e financiadores. Era um oposicionista de portas abertas, que não precisava de tribuna. A feira de Caicó tornou-se a sua Ágora para disseminar a crítica ao regime.
Enquanto isso, o Estado Novo consolidava o seu poder. A repressão política e a propaganda transformavam Getúlio Vargas em pai dos pobres e senhor das leis. No sertão, a imagem de Vargas dividia opiniões: uns o viam como protetor do trabalhador; outros, como o interventor distante que cortava o poder dos chefes locais. Dinarte se encaixava no segundo grupo. Seu silêncio não era resignação; era cálculo. Esperava o momento em que o regime, desgastado pela guerra e pelas contradições internas, abrisse uma fresta por onde o sertanejo pudesse regressar.
O ano de 1945 trouxe essa brecha. A participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial e o discurso democrático imposto pelas potências aliadas minaram o Estado Novo por dentro. Vargas, pressionado, anunciou a redemocratização. Era o chamado que Dinarte esperava. Reapareceu com energia, agora como símbolo da oposição potiguar. Foi um dos fundadores da União Democrática Nacional (UDN) no Rio Grande do Norte e logo assumiu a presidência estadual do partido, a qual era, em essência, a antítese do varguismo, defendendo a economia liberal, a descentralização política e o voto limpo, muito embora, na prática, reproduzisse o velho sistema de mandonismo com novo verniz.
Dinarte compreendia a liturgia desse poder e a adaptou com maestria ao sertão. Se o coronelismo clássico se nutria do favor pessoal e do compadrio, o coronelismo udenista de Dinarte revestia-se de discurso moralista e modernizador. A antiga casa comercial de Caicó tornou-se um quartel político. O comerciante de algodão que se opusera a Vargas agora falava como liderança política que extrapolava os estreitos limites do município e do Seridó, pregando a moralidade administrativa e a autonomia do estado contra os “desmandos centralizadores do Rio”.
A política potiguar do pós-guerra girava em torno de antigas lideranças pré-revolucionárias, nutridas pela máquina do Estado da Primeira República, e por lideranças cevadas na máquina do Estado varguista. O ciclo de 1930-1945 havia transformado Dinarte de revolucionário de província em chefe regional consolidado. O mérito do político seridoense não foi o de apenas resistir ao Estado Novo, mas o de converter sua marginalidade em capital político. Quando muitos temiam o ostracismo, ele o transformou em recurso. Sua biografia seguia o roteiro dos grandes políticos nordestinos: ser esquecido para, depois, ser lembrado com mais força.
O período varguista produziu no Rio Grande do Norte uma recomposição das elites. Antigos coronéis tornaram-se burocratas, e os novos líderes civis provinham das famílias tradicionais que souberam sobreviver ao centralismo federal. Dinarte foi o exemplo acabado dessa metamorfose: conservou o mando local, mas trocou o capataz pelo discurso parlamentar. Era, por assim dizer, o velho poder com paletó novo. Ademais, a redemocratização de 1945 também significou o retorno da disputa ideológica. A UDN buscava respaldo nas classes médias urbanas e na oligarquia regional. Dinarte, à frente da seção estadual do partido, foi um dos fiadores do novo pacto conservador no estado. Sua liderança representava a tentativa de domesticar a democracia: aceitava-se o voto, desde que o eleitor não esquecesse quem mandava no Seridó.
O ciclo varguista, portanto, encerra-se com Dinarte de volta ao tabuleiro política estadual e mesmo nacional. O homem que começara como prefeito nomeado por Vargas agora liderava a oposição ao getulismo. E fazia isso com a autoridade de quem resistira, calado e paciente, à ditadura. A partir de 1945, ele ingressaria definitivamente no panteão político do Rio Grande do Norte, pavimentando a carreira que o levaria ao governo do estado em 1956 e ao senado nas décadas seguintes.
A trajetória de Dinarte Mariz nesse período é, em última instância, o retrato da política brasileira em seu movimento de continuidade disfarçada de ruptura. A Revolução de 1930 prometeu uma nova era e entregou um novo centralismo; o Estado Novo vendeu estabilidade e impôs silêncio; a redemocratização devolveu a voz, mas manteve os velhos donos do microfone. Dinarte compreendeu isso melhor do que ninguém. O sertanejo sobreviveu à tempestade porque sabia que a política, como o sertão, não muda de natureza – apenas muda o vento.