Circo Brasilândia – 3

por Sérgio Trindade foi publicado em 04.nov.25

Na Escola Estadual da Rua das Lamentações, tudo cheirava a burocracia – e, de vez em quando, a algo pior.

Era uma escola que sobrevivia por milagre, prece, cafeína, verborragia vazia e demagogia. Era dirigida pelo senhor Jamal Farid Khalil (Jafa) homem de terno gasto, ar filosófico e craque em falar muito e nada dizer. Seu vice, o professor Pisístrato Belerofonte Taylor Filho – Belerofonte ou simplesmente Belé, para os íntimos e para os que não tinham paciência para recitar epopeias gregas. Era o tipo de educador que acreditava que o caos era apenas uma forma de ordem mais sincera. Ambos, Jafa e Belé, aceitaram um projeto de Delfinno, dono do Circo Brasilândia, que propunha levar “a arte circense às bases do ensino público”. Na prática, o projeto se chamava Oficina de Equilíbrio e Cidadania, mas na boca de quem entendia minimamente do assunto virou Aula do Cocotricolor. O apelido nasceu antes de a primeira aula terminar e jamais morreria.

Delfinno, o autoproclamado instrutor circense, chegava à escola como quem invade um campo de futebol em final de campeonato. De boné suado, camiseta da Adidas e calça jeans, ele descia do seu SUV híbrido (elétrico/gasolina) e com o passo de quem pisa num tapete vermelho – embora o tapete, naquele caso, fosse a calçada rachada e coberta de chicletes petrificados. Trazia uma bola de futebol debaixo do braço e um livro amassado nas mãos, o mesmo que dizia ser o Manual do Equilíbrio Humano. Quando alguém, mais curioso, tentava ler o título, percebia tratar-se de um velho almanaque esportivo do Fluminense, edição de 1971. Se alguém perguntava o que isso tinha a ver com circo, Delfinno respondia, solene, assobiando as palavras e cuspindo o interlocutor: “Tudo. Veja, bem, o futebol é o circo da alma, e um time amado é o trapézio da esperança. O meu é o Fluminense. Mas é também qualquer tricolor de qualquer estado onde eu morei, moro e morarei”.

Imagem feita com auxílio de IA

Delfinno era tricolor em qualquer canto: no Rio de Janeiro, Fluminense; em São Paulo, São Paulo; em Pernambuco, Santa Cruz; no Rio Grande do Norte, Baraúnas.

Morando há anos no Rio Grande do Norte, chamava o Baraúnas de Baru. Era Baru pr’aqui, Baru pr’ali, Baru pr’acolá. Mas o time de seu coração mesmo era Fluminense, desde que assistiu à final campeonato carioca de 1971, o qual o tricolor das Laranjeiras ganhou roubado do Botafogo de Futebol e Regatas.

Pois bem, as crianças, no primeiro dia, esperavam malabarismos, piruetas, talvez um elefante imaginário. Ganharam, em vez disso, uma aula sobre o mambembe meio-campo do Fluminense e o papel espiritual dos títulos carioca de 1971, 1980, 1983, 1984 e 1985, além do campeonato brasileiro de 1984 e, também, o heroico título brasileiro de 1977 do São Paulo e a conquista do campeonato potiguar pela Baraúnas, em 2006.

Delfinno falava com paixão messiânica, e a cada fala gesticulava tanto que o suor formava poças nas axilas e dali pingava no chão. Uma verdadeira lagoa ficava à sua volta. “O equilíbrio, meus caros”, dizia ele, “não está no corpo, mas na mente – e na capacidade de não chutar com a perna de pau.” Enquanto falava, coçava o ouvido, o nariz e, por vezes, as partes baixas, enfiando as mãos por dentro das calças. Alunos diziam que o artista nunca lavava as mãos quando ia ao banheiro. Era esquecimento proposital, segundo todos que o conheciam. A pedagogia da seboseira tornava-se, ali, uma metodologia de resistência. Delfinno, o Mundo – Delfinmundo. Ou Cocotricolor.

No pátio, Delfinmundo improvisava exercícios de acrobacia moral. Mandava os meninos andarem em linha reta sobre o meio-fio, fingindo ser o cabo de aço do circo, enquanto declamava passagens que supostamente eram de Descartes, mas que soavam estranhamente familiares ao hino do Fluminense. “Descartes disse: ‘Vencer é o destino dos tricolores’.” Quando alguém o corrigia, explicando que aquilo não era Descartes, ele retrucava: “Claro que é. Descartes era Fluminense, só não sabia.” Maria das Graças, sua esposa e sócia no Circo Brasilândia, não participava das aulas, mas às vezes aparecia para fiscalizar o marido, manicaca juramentado, de prancheta na mão e olhar de filósofa autoproclamada. Chamava o marido de “meu Rousseau de Bangu” e citava autores que só conhecia de lombada. “O projeto de Iamal é profundamente hegeliano”, dizia a quem quisesse ouvir. “Ele sintetiza o corpo e o espírito, o futebol e o equilíbrio, o suor e o saber. Pura dialética.” Não falava, a singela mariposa apaixonada, dos dedos engordurados do marido e tampouco do seu odor nauseabundo de Delfinmundo, o Fedora potiguar. Os professores fingiam concordar, sem coragem de perguntar o que significava “hegeliano”. A maioria sabia, entretanto, por Delfinno era Delfinmundo ou Fedora.

O diretor Jamal, inicialmente entusiasmado e muito pouco antenado com as questões de ordem orçamentária e pedagógica, começou a desconfiar quando percebeu que as notas de presença do curso eram todas assinadas com o mesmo borrão e que as verbas do projeto pareciam evaporar em ingressos de circo e garrafas térmicas de café. Mas Belé, o vice-diretor, sempre encontrava uma justificativa pretensamente filosófica, de uma pieguice a toda prova. “Jamal, pense bem”, dizia, “Delfinno representa o caos criativo. Se o aluno entende o absurdo, ele entende o mundo.” Jamal suspirava. “E o cheiro?” “O cheiro”, respondia Belé, “é parte do método. Ele, Delfinno, ama os alunos, tem carinho verdadeiro por todos, sabe o que é ser querido e como é bom, sendo querido, querer bem aos outros”, encerrava cofiando a barba imensa.

Nas semanas seguintes, o projeto se tornou um caso de sucesso. Daqueles sucessos de marketing, muito embora qualquer mente sã percebesse que, tirando o marketing, tudo contribuía para um desastre que faria parte do folclore institucional. As crianças competiam para serem escolhidas como voluntárias. O “professor” usava um megafone que não funcionava e gritava tanto que as janelas vibravam. Fazia os alunos repetirem slogans sem sentido: “Equilibra-te e vencerás!”, “O circo é o Brasil e o Brasil é o gol perdido!”. Quando perguntado sobre a finalidade da oficina, ele respondia com a serenidade dos charlatães convictos: “Formar cidadãos com elasticidade moral.” E, de fato, era o que fazia – e bem.

Em uma das aulas, Delfinmundo levou um bode para “exemplificar o instinto do artista de circo”. O animal, que fedia menos que Delfinmundo, escapou, derrubou uma prateleira e mordeu o quadro de honra da escola. Os alunos gritaram, o vice desmaiou e Jamal tentou, em vão, rezar em árabe. Delfinmundo, no entanto, manteve a calma. “Vejam!”, exclamou, “isso é a liberdade em estado puro! O bode é o símbolo do equilíbrio em movimento!” Maria das Graças, ao ser chamada às pressas, anotou algo em sua prancheta e anunciou: “Vamos inserir isso no relatório: abordagem vivencial do caos.” E o bode, depois batizado de Aristóteles, tornou-se mascote do projeto. Com camiseta e tudo.

A higiene de Delfinno virou lenda. Dizia-se que ele tinha um sabonete decorativo, desde 1998 e que acreditava que “água demais afoga a alma”. Nas reuniões pedagógicas, sentava-se perto do ventilador, o que provocava efeitos colaterais devastadores na assembleia. Certa vez, uma professora tentou, diplomaticamente, oferecer-lhe um desodorante. Ele recusou, ofendido: “Minha senhora, eu exalo humanidade.” O rumor correu pela escola: Delfinno não transpira, evangeliza. Os alunos criaram cantigas, os funcionários abriram janelas, e o zelador ameaçou pedir transferência. Jamal, pressionado pela Secretaria, não podia demitir um “instrutor aprovado por edital”.

Enquanto isso, Maria das Graças, cada vez mais confiante em seu papel de “curadora intelectual do projeto”, organizava palestras sobre filosofia do circo. Citava Kant como se fosse palhaço, e Marx como se fosse mágico. “Como dizia Marx”, discursava, “a acrobacia é a superestrutura da dialética social.” Os professores aplaudiam por inércia. Belé, sempre conciliador, resumia: “É uma experiência estética… e olfativa.”

Certa manhã, apareceu um fiscal da Secretaria de Educação para avaliar o projeto. Encontrou Delfinmundo ensinando malabarismo com bolas de futebol e citando, entre um chute e outro, “Kant, ponta-esquerda da razão, começou no Santa Cruz, ao lado de grandes craques do futebol, e se transferiu para o Fluminense, formando o meio com Didi”.  O fiscal, atônito, perguntou qual era o plano pedagógico. Delfinmundo respondeu: “O plano é não cair.” Delfinmundo tinha calafrio quando lembrava da queda do Fluminense. O pobre fiscal, sem argumentos, preencheu o relatório com uma única observação: “Atividade interdisciplinar de caráter performático.” Maria das Graças adorou. Disse que era “o reconhecimento oficial da transgressão”.

A fama do “professor Cocotricolor” espalhou-se pela cidade. Programas de rádio faziam piadas, e uma crônica de jornal descreveu o curso como “o maior espetáculo de insanidade já patrocinado pelo Estado”. Delfinmundo, longe de se envergonhar, recortou a crítica e a pregou na parede da sala dos professores, com o título: “Prova de sucesso.” Jamal ameaçou encerrar o projeto, mas Maria das Graças e Delfinmundo compareceram à reunião com um bolo e um discurso sobre arte popular. “Não se destrói o que é autêntico, Jamal”, disse a filósofa de suvaco. “Mesmo o mau cheiro é uma forma de identidade cultural.” O diretor, vencido pelo cansaço e pelo cheiro, assinou a renovação.

As aulas seguintes entraram para o folclore pedagógico. Delfinmundo introduziu a “ginástica filosófica”, que consistia em pedir aos alunos que equilibrassem livros na cabeça enquanto gritavam nomes de jogadores do Fluminense, do Baraúnas, do São Paulo e do Santa Cruz. “É a harmonia entre corpo e mente”, explicava. Um aluno, revoltado, perguntou se aquilo servia para passar de ano. “Serve”, disse ele. “Serve para não cair na vida.” A resposta foi copiada no mural da escola, sob o título “Frase do Mês”.

Belé, o vice, tentava racionalizar tudo. “Delfinno é um caso de arte bruta”, dizia. “Ele não ensina, ele revela.” Jamal, cada vez mais desiludido, inerte e ausente, respondia: “Ele revela é o inferno.” E calava-se, satisfeito que estava, em receber salário sem nada fazer de útil.

A situação atingiu o paroxismo quando Delfinno decidiu encenar uma “parada circense” no pátio, com direito a perucas, cartolinas e um número final chamado “O trapézio da vitória”. Um aluno se pendurou no varal do pátio, o varal caiu, e todos os figurinos voaram para o terreno vizinho. O caos foi absoluto. Maria das Graças, porém, declarou: “Foi uma experiência sensorial libertadora.” O inspetor da Secretaria, que estava de passagem, anotou: “Evento interdisciplinar bem-sucedido.”

Aos poucos, o projeto virou um segredo embaraçoso. A escola, entretanto, não podia cancelá-lo: havia contratos, ofícios, carimbos, e, sobretudo, medo. Delfinmundo, ao perceber que ninguém mais o fiscalizava, passou a falar exclusivamente de futebol. Durante meses, o conteúdo resumiu-se à análise detalhada do jogo de 1971, do título de 1980, da jornada heroica do Baraúnas de 2006 e do valentia do São Paulo de 1977. “Ali, meus caros”, dizia, com voz trêmula, “morreu a inocência do Fluminense e nasceu o equilíbrio trágico da existência.  Ali o São Paulo renasceu. Ali o Baru mostrou que não se brinca com Mossoró” Maria das Graças anotava: “Síntese trágica do ideal circense.” Belé suspirava: “E uma maravilha de tragédia grega. E ela não para.”

Quando finalmente o contrato terminou, Delfinmundo organizou uma “aula de encerramento” com direito a fanfarra e discurso. Vestiu uma túnica que um dia fora branca, subiu num tambor e declarou: “Hoje encerramos o ciclo do equilíbrio! Que cada um leve consigo a lição de nunca cair!” A plateia, formada por meia dúzia de alunos exaustos, aplaudiu por educação. O bode Aristóteles berrava do lado. Jamal, no fundo, rezava para que tudo acabasse sem incêndio. Maria das Graças, emocionada, citou Foucault (ou pensou que citava): “Onde há poder, há suor.” E Delfinmundo, triunfante, finalizou com seu lema: “Ensinar é para os fracos. Eu vim para conquistar… e feder.”

Quando o portão da escola se fechou, restou no ar um perfume indescritível de desodorante imaginário e tragédia pedagógica. No registro da Secretaria, o projeto constava como “bem-sucedido”. No coração da Rua das Lamentações, uma certeza: nunca se aprendera tanto sobre o ridículo humano. Um jornalista quis saber: “Por que Delfinno chamado de Cocotricolor?”. Agora eu não digo, mas na próxima…

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