O combate pela pedra
No Brasil, tudo vira piada, troça, meme. E o Rio de Janeiro, esse palco natural de apoteoses e velórios, tem a mania de transformar qualquer debate sério em desfile de carnaval de época e fora de época. A mais recente estrela desse cortejo é a professora Jacqueline Muniz, da Universidade Federal Fluminense (UFF), que disse o indizível: em certos becos e vielas, um sujeito com uma pedra pode ser mais eficaz que um bandido com um fuzil. Pronto, tirando os exageros em que incorreu a docente, foi o bastante para o país inteiro se lançar num duelo de zombarias, lives e indignações, como se ela tivesse proposto o retorno à idade da pedra lascada. Ora, ali, na manifestação que fez a professora introduziu uma metáfora, um raio de inteligência tática.
Estudiosa respeitada de segurança pública e uma das pessoas que ajudou a pensar o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Jacqueline Muniz falava de tática, de estratégia, de adequação de meios. Mas o Brasil não é bom com nuances. O brasileiro médio não entende o que não cabe em três palavras e um emoji. Então, quando ouviu “pedra”, imaginou logo um esculacho, uma afronta à polícia, um ultraje à ordem. De repente, a sociologia virou piada, a análise virou escárnio, e o debate sobre segurança pública foi reduzido à eterna disputa entre quem “sobe o morro” e quem “fala da sala com ar-condicionado”.
Mas o país é assim, não suporta que alguém pense fora dos padrões genéricos e quase sempre binários. A inteligência, entre nós, é sempre suspeita. Basta uma frase que não se encaixa na histeria do dia para que surjam mil pessoas de teclado, brandindo fuzis imaginários contra o herege da vez. Jacqueline Muniz ousou dizer que o fuzil, esse fetiche nacional, símbolo de masculinidade bélica e de poder fálico travestido de arma, é um erro tático nas vielas apertadas. E o Brasil respondeu com sua arma preferida – a ignorância vaidosamente orgulhosa. O curioso, meus caros e poucos leitores, é que ela não falou nada de revolucionário. Disse o óbvio que ninguém quer ouvir: inteligência vale mais que força bruta, tática importa mais que barulho, o espetáculo da guerra não substitui o trabalho de segurança pública. Mas o Rio de Janeiro (e o Brasil) vive de espetáculo; o tiroteio tem horário nobre. E, nesse espetáculo de pólvora e sangue, a professora virou personagem risível, alguém que ousou falar de pedras num país que só idolatra fuzis, mesmo a fala dela tendo sido, consciente ou inconscientemente, a evocação do mito de Davi e Golias, uma quase provocação divina. Ora, o Brasil é o Golias dos trópicos, enorme, pesado, armado até os dentes e, ao mesmo tempo, patético, desastrado, tropeçando nas próprias botas. E Davi? Bem, Davi é o bandido da favela, enorme, pesado e armado até os dentes. Mas o bandido da favela conhece o terreno, sabe onde se esconder e onde mirar. É o sujeito que, por necessidade, aprendeu que o poder real não está na arma, mas na cabeça de quem a empunha. O problema é que, na tragédia carioca, tanto Davi quanto Golias morrem no fim, expondo a miséria do país que acredita que entrará no clube dos ricos dali a alguns dias.
As reações foram previsíveis, como em qualquer telenovela ruim. Delegados, coronéis e políticos correram para as redes sociais, ansiosos por seu close indignado. “Essa professora nunca subiu o morro!”, bradou um deles, como se a experiência de guerra substituísse o pensamento. Outros riram, zombaram, fizeram vídeos com pedras na mão, transformando o debate em circo. Até Nikolas Ferreira, deputado federal e influencer, apareceu para desafiar o bom senso, transformando a metáfora em duelo de rua. O Brasil ama o espetáculo da virilidade e detesta o raciocínio. E o mais irônico é que, por baixo da espuma, Jacqueline Muniz tocou no ponto exato da ferida – o fetiche do fuzil, essa entidade religiosa, o terço do guerreiro, o brinquedo do traficante, o símbolo fálico do Estado e da marginalidade. De um lado, a polícia ostenta suas armas longas como prova de autoridade. Do outro, o crime empunha as mesmas armas como troféu do controle que tem sobre as favelas, eufemisticamente chamadas de comunidades. É o mesmo fuzil, apenas trocando de mãos conforme o turno da tragédia farsesca. No meio, o povo, que apanha dos dois lados e ainda precisa agradecer.
O Brasil ama uma guerra desde que ela seja televisionada. O tiroteio é o nosso reality show. E o policial e o bandido são apenas os atores de uma dramaturgia grotesca, escrita por governos que nunca tiveram coragem de pensar em segurança pública de verdade. O que a professora disse – e ninguém quis ouvir – é que o problema não é o calibre, mas o cérebro. Que o Estado troca a investigação pela pirotecnia, o planejamento pela emboscada, a inteligência pela força. A eficiência é medida por sangue e manchetes, e o Rio é o laboratório da loucura brasileira. Tudo ali acontece primeiro e pior. As operações policiais parecem coreografias do caos, e cada incursão termina com corpos no chão e rinhas nas redes sociais. A lógica é simples: se matou muito, foi eficiente; se matou pouco, foi frouxo. E quando alguém ousa perguntar se há outro jeito, o coro dos ofendidos reage com uma fúria bíblica, como se questionar a eficácia da morte fosse trair a pátria.

Imagem feita com auxílio de IA
Há nisso uma dimensão quase religiosa. O brasileiro transformou o combate ao crime em liturgia, e a bala em hóstia. A cada operação, renova-se o culto do sacrifício: o bandido morre, o inocente morre, o policial morre, e o país, em nome da segurança, aplaude. E quem tenta raciocinar é imediatamente acusado de “passar pano” ou “defender vagabundo e bandido”. É a santa inquisição tropical, com direito a comentários patrióticos e memes com caveira.
Jacqueline Muniz, assisti direitinho às falas dela, não falou com arrogância. Falou com lucidez. É verdade que ela não sabe o que é efetivamente o inferno de subir um morro e invadir uma favela sob fogo cerrado. Ela nunca participou de uma operação do tipo, como a esmagadora maioria da população brasileira também não participou. É verdade que um bandido que porta um fuzil, que aterroriza a população e atira em policial deve ser combatido como se fosse um soldado, um guerrilheiro, um terrorista e, se necessário, deve ser morto. É verdade que professores universitários, promotores e juízes sabem pouco do dia a dia das forças policiais. É verdade que desalojar facções acantonadas em morros e favelas espalhadas pelo Rio de Janeiro e por diversas cidades brasileiras cobrará um preço altíssimo, inclusive em vidas. No entanto, isso não habilita a ignorância histérica tomar o lugar da lucidez serena. Por isso, a frase sobre a pedra deveria provocar reflexão, e não apenas deboche. Ao final, porém, ganhou a turma do meme. Os políticos ganharem palco, os jornalistas tiveram as suas manchetes e o público encontrou mais um bode para expiar sua própria mediocridade. No fundo, sejamos sensatos, quase ninguém quer resolver a violência. O crime é útil demais. Alimenta discursos, campanhas, orçamentos, programas de TV. É um espetáculo com bilheteria garantida. Resolver o problema seria fechar a casa de espetáculos. E muita gente não quer que a cortina se feche. Então, seguimos aplaudindo a tragédia, entre um enterro e outro, enquanto o Rio se desmancha sob o aplauso da plateia.
Imagine a seguinte cena: um plenário com políticos e especialistas discutindo se uma pedra vence um fuzil. Um deputado grita: “Pedra é coisa de comunista!”. Outro rebate: “Fuzil é coisa de fascista!”. No fundo, um policial tenta explicar que o problema é a falta de inteligência, mas ninguém escuta. No meio da confusão, surge uma senhora simples, moradora do morro, dizendo: “Eu só queria sair pra trabalhar sem levar tiro”. Silêncio. E então, como num gesto de ironia divina, alguém pega uma pedra do chão e pergunta: “E agora, o que fazemos com isso?”. A pedra, na fala de Jacqueline Muniz, não é um convite à barbárie, mas um espelho. É a metáfora de um país que perdeu o senso da medida. Um país onde tudo é desproporcional: a violência, o discurso, o ódio, a covardia. A pedra simboliza a inteligência, a adaptação, a astúcia, virtudes que o Brasil desaprendeu. Hoje, só nos resta a força bruta, a verborragia e o moralismo armado. Certamente se Davi vivesse no Rio de Janeiro, morreria antes de levantar a funda. Golias, por sua vez, daria entrevista coletiva dizendo que “o sistema venceu”. E a plateia aplaudiria, emocionada, sem perceber que o verdadeiro inimigo é a estupidez nacional, o nosso Golias eterno.
No final das contas, Jacqueline Muniz é só mais uma personagem de um desastre que se repete há décadas, a saber, o drama do país que confunde reflexão com provocação, e pensa que pensar é um ato de traição. Ela teve a coragem de dizer que o problema não é o calibre, é o método; que o inimigo não está apenas nas favelas, mas também nas planilhas, nos gabinetes e na nossa preguiça de pensar. E, por isso, foi crucificada. No Brasil, a cruz é o prêmio da lucidez. O episódio revela o país em toda a sua nudez moral. Somos um povo que teme a inteligência e venera o barulho. Transformamos a morte em espetáculo e o espetáculo em anestesia. No Rio de Janeiro, a cada operação, morre um pouco da civilização e nasce o mito do herói armado, do inimigo absoluto, do sangue redentor. Enquanto isso, muitos choram, políticos discursam, especialistas explicam, e a cidade continua a mesma: linda, suja, violenta e profundamente cínica.
O debate, meus três ou quatro leitores, sobre pedra e fuzil não é sobre armas, mas sobre o país que somos. Um país que troca pensamento por fúria, argumento por meme, humanidade por plateia. E, se há uma pedra nessa história, talvez ela esteja atravancando nosso caminho, como a pedra do poema de Drummond. É a pedra da burrice, da pressa, do espetáculo. Talvez seja essa a pedra que precisamos lançar, não contra Golias, mas contra nós mesmos. Há uma outra pedra, de um outro poeta (João Cabral de Melo Neto), que nos ensinaria muito: “Uma educação pela pedra: por lições; / para aprender da pedra, frequentá-la; / captar sua voz inenfática, impessoal (pela de dicção ela começa as aulas). // A lição de moral, sua resistência fria / ao que flui e a fluir, a ser maleada; / a de poética, sua carnadura concreta; / a de economia, seu adensar-se compacta: / lições da pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem soletrá-la”.
A verdadeira guerra, meus poucos leitores, não é entre polícia e bandido, é entre cérebro e barbárie. E, se ainda houver esperança – pequena, redonda, dura como uma pedra –, provavelmente ela esteja nas vozes que teimamos em não ouvir, de pessoas que ousam lembrar ao país que pensar ainda é possível, mesmo quando todos preferem atirar – sem esquecer que por vezes, em momentos cruciais, devemos atirar.
Não tenho qualquer simpatia pelo campo ideológico da professora Jacqueline Muniz. Num primeiro momento rejeitei e abominei mesmo suas palavras, até que, buscando informações sobre a sua formação profissional, abandonei minhas preconcepções e revi o que pensava. Isso não quer dizer que eu concorde integralmente com as manifestações dela. Penso que ela, por sinal, equivoca-se quando aponta ser o fuzil uma arma pouco eficaz para o bandido nas vielas das favelas, esquecendo-se que ele está alojado e bem guarnecido numa posição de defesa, num terreno no qual ele tem amplo conhecimento, diferentemente do policial que está atacando, portanto, em movimento. É justamente por estar em movimento e desguarnecido que os membros das forças de segurança verão, em termos, a menor eficácia do fuzil. Digo em termos porque para rasgar as defesas inimigas o fuzil é, pelo poder de fogo, muito mais eficiente e eficaz do que a pistola, uma arma mais de dissuasão que de ataque. Quanto à pedra, não é arma física para as circunstâncias. Ela deve saber disso. Se não sabe, não é a especialista que seu currículo indica.