Lula e o pacto mefistofélico
Há episódios na vida pública brasileira que, pela estranheza com que se movem no palco institucional, exigem mais do que a crônica política ou a cartilha jurídica. Requerem, antes, uma intuição literária, talvez até metafísica, capaz de traduzir aquilo que a razão, por pudor ou impotência, hesita em nomear.
A libertação de Luiz Inácio Lula da Silva, em novembro de 2019, pertence a essa família de acontecimentos; tem o clarão da história, mas guarda também o cheiro de enxofre de um clássico da literatura. Não por acaso, ali onde a lógica jurídica se mostrou insuficiente para explicar o súbito reajuste das placas tectônicas do Supremo Tribunal Federal (STF), abriu-se espaço para a velha imagem do pacto mefistofélico, a aliança obscura que, desde Fausto, parece reger os momentos em que o poder opta por atalhos invisíveis.
Não se trata, friso, de tomar a metáfora de forma literal. Não houve, ao menos até onde as mãos humanas podem alcançar, assinatura em sangue, nem o sopro de Mefistófeles sobre a mesa de Dias Toffoli ou sobre o ombro de Gilmar Mendes A literatura ensina, porém, que todo pacto demoníaco nasce menos da presença física do diabo do que de um acordo silencioso, uma convergência de interesses, fissuras morais, temores recíprocos e oportunidades que se somam como se obedecessem a um roteiro escrito além da vontade expressa dos personagens. O diabo, afinal, sempre opera pela dose certa de ambiguidade.
É possível dizer que a prisão de Lula, em abril de 2018, já era, em si, parte desse enredo, pois ela ocorreu em um país fatigado por anos de Lava Jato, embriagado pela cruzada moralista e disposto, como os porcos de Orson Scott Card, a escolher sempre quem segura o balde de comida, mesmo depois de ouvir o ruído metálico da lâmina no recinto ao lado. O STF, naquele momento, sustentava, com zelo quase missionário, a tese da prisão após a segunda instância com zelo quase missionário, como se a Constituição de 1988 houvesse deixado de ser um texto e se transformado numa moldura aberta ao pragmatismo. Era a fase ascendente de Fausto, quando a sede de resultados (“o momento que eu quero deter”) justificava toda e qualquer concessão aos instintos.
No ano seguinte, entretanto, algo começou a ranger nesse pacto tácito. A Lava Jato, antes incensada como a catarse moral da República, já sofria erosões violentas e visíveis. A Vaza Jato revelava conversas impróprias, desenhando um Sísifo judicial cuja pedra, empurrada por procuradores e magistrados solícitos demais, começava a rolar ladeira abaixo. A imparcialidade de Sérgio Moro, até então um dogma, surgia fissurada nos diálogos tornados públicos. E, no horizonte, o governo Bolsonaro exibia a sanha e a voracidade de quem não pretendia dividir a cena com juízes vaidosos nem procuradores estrelados. O teatro do poder via, nos subterrâneos, o rearranjo de personagens; Fausto já não era o mesmo, e Mefistófeles percebia que era preciso renegociar termos.
Foi nesse clima, entre ruínas e pressões mal confessadas, que três Ações Declaratórias de Constitucionalidade (43, 44 e 54) retornaram ao plenário do Supremo como quem volta para exigir a fatura atrasada de um pacto mal cumprido. O Tribunal, dividido em suas lealdades internas, parecia escolher entre reafirmar o zelo moralista da Lava Jato ou resgatar a literalidade do artigo 5º da Constituição, aquele que, por duas décadas, dormiu intocado sob a crença de que ninguém seria considerado culpado antes do trânsito em julgado. E, aí, a votação, distribuída em cinco sessões, deixou claro que a decisão ultrapassava a técnica jurídica e testava forças, não sendo exagero sugerir que, entre os votos, ecoava o sussurro de Goethe: “Parte da força que sempre quer o mal e sempre faz o bem.” No caso, o “mal” seria, para alguns, libertar Lula e reescrever capítulos da Lava Jato; o “bem” seria, para outros, restaurar o devido processo legal e corrigir uma interpretação constitucional que se abrira demais ao voluntarismo.
Sob essa ambiguidade, o placar final (6 a 5) revelou mais do que o número de votos – mostrou que o pacto institucional havia mudado de lado. Celso de Mello e Marco Aurélio, coerentes com posições históricas; Lewandowski e Gilmar, já distantes da ortodoxia punitivista; Rosa Weber, fiel ao formalismo que em 2018 sacrificara contra a própria convicção; e Toffoli, sempre atento à bússola política, compuseram a maioria que devolveu ao texto constitucional o peso que ele sempre reclamou. Mefistófeles sorriu naquele momento, por gosto e, principalmente, por método, afinal pactos não são celebrados pela felicidade, mas pela conveniência.
A decisão tinha efeito imediato. Milhares de presos poderiam se beneficiar da nova compreensão. Mas foi Lula, claro, quem deu corpo simbólico à mudança. Sua libertação não brotou de benevolência, mas do automatismo jurídico, pois logo veio um pedido à 12ª Vara Federal de Curitiba e um juiz substituto, Danilo Pereira Júnior, aplicou o novo entendimento e expediu um alvará de soltura. Ato contínuo, o portão da Polícia Federal abriu como uma metáfora que o Brasil ainda tentaria decifrar.
Naquele instante, o Brasil não testemunhava apenas a soltura de Lula. Ali o que se via foi o estalo de um pacto rompido e a perda da hegemonia moral da Lava Jato. Ali, o STF retomava sua voz constitucional, e a política brasileira ganhava um ator de volta ao palco, ator que, como Fausto, havia descido ao fundo do poço, mas agora retornava, não redimido, mas reconfigurado. E é aqui que a metáfora goethiana ganha profundidade. Em Fausto, o pacto é o preço da ambição e, também, o modo como o protagonista se reconcilia com sua própria história.
Lula, ao sair da prisão, emergia como alguém que atravessara o inferno – um inferno jurídico, midiático, moral – e voltava com a aura daqueles personagens que, mesmo derrotados, preservam algo de mítico. A narrativa pública, por mais que procurasse simplificar os fatos, reelaborava-o como figura trágica; ora vítima, ora culpado; ora mártir, ora beneficiário de articulações invisíveis. E é nessa área turva e enevoada, na qual a política brasileira sempre gostou de caminhar, que podemos falar num pacto mefistofélico. Não porque Lula tenha negociado com sombras, mas porque sua libertação dependeu de uma série de movimentos institucionais que, somados, produziram um desfecho que ninguém, isoladamente, teria ousado prever meses antes. Pactos assim não se firmam numa mesa; desdobram-se como correções de rota, alianças implícitas, temores compartilhados. A política, quando quer, comanda as marés.
O STF enfrentava pressões, e tentava escapar delas. O governo Bolsonaro, em sua impaciência autoritária, ensaiava ataques à Corte, aos jornalistas, aos adversários. O Ministério Público perdia capital moral. E o país parecia entrar numa zona de fadiga moral, na qual ninguém mais acreditava em pureza alguma. Nesse ambiente, devolver a Lula a liberdade era também reequilibrar forças, impedindo que o Executivo avançasse, reduzindo o poder inflado da Lava Jato, recuperando a autoridade constitucional. Foi, nesse sentido, um pacto de sobrevivência, mais necessário do que desejado.

Imagem feita com auxílio de IA
Como em Goethe, o pacto não sela destinos, reorganiza-os. A saída de Lula, em 2019, abriu caminho para sua elegibilidade em 2021 e para sua vitória eleitoral em 2022, desdobramentos que, como ironia histórica, recolocaram os mesmos atores de 2019 diante de suas escolhas anteriores. A história, fiel à sua ironia, completava o círculo. Aqui, meus três ou quatro leitores, não se trata de afirmar que Lula deve sua liberdade a um diabólico benfeitor. Isso seria pueril. A metáfora ilumina aquilo que a narrativa cronológica deixa na sombra. A política brasileira, mais do que outras, opera nessa zona mística onde as decisões institucionais não se explicam apenas pelos autos, mas pela atmosfera. E a atmosfera de 2019 era densa: governos titubeantes, um STF pressionado, a Lava Jato desidratando, a democracia respirando por aparelhos, e a história exigindo rearranjos. Foi nesse caldo que se formou o pacto, não escrito, não confessado, que devolveu Lula ao mundo dos vivos.
Se há uma lição nesse episódio, talvez seja a de que o pacto mefistofélico não é o triunfo do mal, mas o reconhecimento de que a política raramente se faz sem ambiguidades morais. Fausto não queria a perdição; queria sentido. As instituições brasileiras, em 2019, tampouco buscavam absolutos; buscavam equilíbrio. E Lula, em meio a tudo isso, foi simultaneamente objeto e sujeito desse movimento. A liberdade que recebeu não foi um presente, mas a materialização do colapso de um modelo punitivista que se sustentou até onde pôde. A Constituição, silenciosa como sempre, apenas esperou seu tempo. E quando o tempo chegou, os ministros, como personagens convocados por forças maiores, cumpriram o rito que lhes cabia. Assim se fechou o pacto, ou se quebrou, dependendo do ponto de vista.
E nós ficamos presos entre Fausto e Mefistófeles, entre a esperança e o desencanto, tentando decifrar se nossos pactos são escolhas ou fatalidades. Há uma certeza nisso tudo, porém: a conta será alta e difícil de pagar.