A equação da esperança: entre a régua e o abismo

por Sérgio Trindade foi publicado em 19.nov.25

O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), desde a sua metamorfose em 2009, tornou-se mais do que um instrumento burocrático de acesso ao ensino superior; converteu-se em fenômeno sociológico, espelho fiel das contradições brasileiras e laboratório das nossas esperanças aritméticas. Ele é, ao mesmo tempo, régua, espelho e rosário, pois mede, reflete e absolve. Sua frieza estatística expressa em notas, percentuais e médias ponderadas abriga, disfarçada, uma fé quase religiosa na possibilidade de quantificar o mérito, como se a inteligência pudesse caber num gráfico e a esperança, numa planilha.

A mais recente mudança no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) reacendeu a antiga polêmica sobre a equivalência das edições do exame. O Ministério da Educação (MEC) anunciou que, a partir de 2026, o estudante poderá usar as notas dos três últimos ENEMs (2023, 2024 e 2025) para concorrer às vagas nas universidades públicas (Portal Gov.br, 2025). A decisão, tecnicamente elegante, parecia simples: permitir ao aluno escolher a melhor média entre três provas distintas. Há quem defenda o percursos escolhido pelo MEC, mas há críticas fortes. Fiquemos, primeiro, com os críticos, os quais dizem que, como todo gesto de aparente bom senso, ele esconde suas ironias. É uma espécie de indulgência estatística: dá-se ao candidato o direito de ser julgado pelo seu melhor passado, desde que o modelo matemático garanta que passado e presente sejam comparáveis.

Essa garantia repousa sobre a Teoria de Resposta ao Item (TRI), o coração psicométrico do ENEM. A TRI não soma acertos como um vestibular antigo; ela mede a proficiência, segundo os defensores do método. Cada questão tem um peso e uma dificuldade calibrada, permitindo que um candidato que acerte 30 questões difíceis pontue tanto quanto outro que acerte 40 fáceis. A promessa é eliminar a injustiça do acaso, purificar o mérito da sorte. Em teoria, um 700 em Matemática em 2022 é o mesmo que um 700 em 2024. Os críticos dizem que isso só ocorre em teoria e está amparada num conceito tão volátil quanto a alma – a proficiência, porque, como ensinam os fatos, a vida é menos estável que os modelos.

Segundo o INEP, a média geral dos candidatos varia de forma constante, embora discreta. Em 2023, a redação teve média de 645 pontos; em 2024, subiu para 660. Em Linguagens e Matemática, as oscilações foram semelhantes, e estatisticamente “esperadas” (INEP, Relatório Técnico 2024). A TRI explica: pequenas variações são compatíveis com diferenças amostrais e ajustes de escala. Quem vive o exame, alegam os críticos da medida do MEC, sabe que nenhuma prova é igual à anterior.

A matemática do ENEM tenta domar a psicologia dos brasileiros. E no Brasil, tudo que promete igualdade termina servindo à desigualdade. As fórmulas são belas e provavelmente precisas, mas o país é torto. A cada edição, o ENEM muda de pele: muda o tema da redação, muda a sintonia do tempo, muda o humor do estudante que acordou cedo demais num domingo de novembro. E por mais que a TRI corrija desvios, ela não corrige a fome, o cansaço ou a escola precária.  Os números, ainda que neutros no papel, nascem de corpos desiguais. Entre 2019 e 2024, o abismo entre as notas médias dos alunos da rede privada e da pública manteve-se estável: cerca de 100 pontos em Linguagens e até 150 em Matemática (INEP, Microdados do ENEM). Os dados são oficiais, mas o drama é humano. Um aluno que estudou com internet de fibra, professor de cursinho e lanche pago pelo pai compete com outro que fez o simulado no caderno emprestado. A TRI equilibra equações, não biografias. Tudo isso é verdade, afirmam os defensores da proposta, o problema, porém, não está na TRI e, sim, no quadro social brasileiro.

Há quem defenda, com paixão aritmética, que o uso das três últimas notas no Sisu é avanço civilizatório. De certo modo, é. Dá ao estudante mais chances, mais tempo, mais esperanças. Mas há também um risco invisível, a saber, transformar a seleção pública num mercado de arbitragem, em que quem tem informação e tempo joga com os números como se fossem ações da bolsa. O pobre faz o ENEM quando pode; os ricos e remediados, quando querem e, depois, escolhem o melhor resultado. Eis a velha lei do país tropical: até a meritocracia vem com subtítulo social.

O Ministério da Educação e o INEP sustentam que a comparabilidade entre provas é estatisticamente garantida. O argumento é tecnicamente sólido: a TRI calibra a dificuldade e cria uma escala comum de proficiência. Mas há um detalhe que nem o mais sofisticado modelo resolve: o tempo. O aluno de 2022 não é o mesmo de 2025. Mudaram as condições de ensino, o impacto da pandemia, a inflação da esperança. O mundo digital alterou a concentração, a leitura, o vocabulário. Como garantir que o mesmo 700 diga a mesma coisa em tempos tão distintos?

O tempo, lembrou Drummond, é um rio que corre, e nós somos as pedras. O ENEM tenta medir as pedras como se o rio não existisse.

A subjetividade do exame, sobretudo na Redação, torna qualquer equivalência uma ficção elegante, ouvi um especialista dizer. A cada edição, o tema traz o espírito do tempo: Democratização do acesso ao cinema, Persistência da violência contra a mulher, Invisibilidade do trabalho de cuidado, Intolerância religiosa. O de 2023, por exemplo foi Desafios para o enfrentamento da exclusão digital, quando o Brasil vivia o nervosismo de um país recém-saído do confinamento. O de 2024, ao escrever sobre Saúde mental e juventude conectada, enfrentou outro espelho. O deste ano foi Perspectivas acerca do envelhecimento na sociedade brasileira, o desafio de enfrentar um mundo no qual o descanso ao final de uma vida de trabalho está sendo empurrado para um futuro incerto, para um abismo. Como comparar as três experiências? Só mesmo um algoritmo com pretensões divinas.

Por isso, mais que estatística, o ENEM é metáfora. É o retrato da nossa ilusão de justiça, um ritual nacional em que milhões de jovens acreditam, por dois dias, que o país é uma balança e não uma pirâmide. Os gráficos de desempenho poderiam ser lidos como um romance sobre o Brasil, um romance em que a desigualdade é o personagem fixo e a esperança, o protagonista substituível.

Ainda assim, o exame tem méritos reais. Ele democratizou o acesso e substituiu o labirinto dos vestibulares locais por um sistema unificado. Segundo o MEC, mais de 4,8 milhões de pessoas se inscreveram no ENEM 2025, e cerca de 70% das vagas em universidades públicas são preenchidas via Sisu (Agência Brasil, 2025). O dado impressiona: o exame é hoje o maior processo seletivo do hemisfério sul. Mas o Brasil é o país que consegue transformar até uma boa ideia em um enredo de pastelão.

Há algo de profundamente irônico no nosso entusiasmo por índices e notas. Somos um país que não consegue medir o próprio analfabetismo funcional, mas pelejamos para comparar proficiências entre edições. Não temos biblioteca em metade das escolas públicas, mas calculamos o desvio-padrão da esperança. Tudo muito sofisticado, mas talvez inoportuno.

O grande desafio não está em provar que a TRI funciona. Ela funciona. O desafio está em garantir que as condições de aprendizado sejam minimamente comparáveis. O exame mede o que o aluno aprendeu, mas o aluno aprendeu o que o sistema ensinou – e o sistema ensina mal. Como resumiu o próprio INEP em relatório de 2024, “a proficiência média reflete, sobretudo, o capital educacional de origem do estudante”. A nota não mede apenas o indivíduo, mas o lugar de onde ele vem. E aqui está o ponto em que a matemática cede lugar à moral. A decisão de aceitar as três últimas notas é um gesto técnico, mas o seu efeito é político, pois consolida a crença de que a justiça pode ser calculada. Enquanto isso, o professor mal pago, o aluno subnutrido e o laboratório que nunca abriu seguem fora da equação. As planilhas nos tranquilizam, pois parecem ordem. Mas é ordem sobre o caos, e o caos, como se sabe, é mais teimoso que a esperança, como demonstra um dado de 2023: apenas 4% dos candidatos obtiveram nota superior a 900 na redação (INEP, 2024). A estatística parece neutra, mas guarda uma poesia triste: esses poucos estão concentrados, majoritariamente, em escolas privadas e nas capitais. A excelência, no Brasil, ainda tem CEP.

De certo modo, o ENEM é o retrato mais fiel da nossa contradição: queremos um exame justo num país injusto. Queremos uma régua perfeita para medir um corpo torto. A TRI, abstraindo todos os méritos que tem, é nossa versão matemática da utopia: sonhamos que, calibrando os erros, eliminaremos as desigualdades. No fundo, talvez o que nos angustie não seja a dúvida sobre a comparabilidade das provas, mas a comparação entre gerações, entre o aluno que fomos e o país que viramos. O ENEM é o espelho do Brasil que insiste em medir tudo, menos a si mesmo.

Quando o Inep anuncia suas médias e percentuais, o noticiário se apressa em interpretar os números como se fossem sinais do futuro. Mas o futuro, no Brasil, é sempre adiado para o próximo edital. E o Sisu, esse oráculo que promete meritocracia, é só mais uma encenação da velha disputa entre o mérito e o milagre.

Imagem feita com auxílio de IA

Em tempos de algoritmos e dashboards, ainda buscamos respostas (segundo os defensores) ou consolo (segundo os críticos) nos números, como quem consulta horóscopos. Queremos acreditar que a nota é justa, que o cálculo é neutro, que o sistema é incorruptível. Talvez seja. Mas o país não é. E assim seguimos, ano após ano, entre a estatística e o espanto, repetindo o ritual nacional do ENEM, essa missa dominical da juventude brasileira. Uns chegam de carros, outros de Uber, muitos de ônibus, todos cheios de esperança. E todos, no fim, deixam o ginásio com o mesmo sentimento: o de que o Brasil ainda não aprendeu a diferença entre medir e compreender. Porque medir é fácil, basta a régua. Compreender é o que falta. E o ENEM, espelho reluzente, mostra-nos não apenas o que sabemos, mas o que ainda fingimos não ver.

posts relacionados
Logo do blog 'a história em detalhes'
por Sérgio Trindade
logo da agencia web escolar