Dunas, paixões e a Insurreição de 1935: o vento de Nei Leandro de Castro
A editora Escribas nos trouxe recentemente um presente: a segunda edição de As duas vermelhas: romance em tempo de rebelião, de Nei Leandro de Castro (a primeira edição, da A. S, Editores, é de 2003).
O poeta e romancista Nei Leandro de Castro entrega em As dunas Vermelhas um de seus mais ambiciosos projetos: um romance que atravessa a história, a memória e a política local, com Natal, e mais especificamente a Insurreição Comunista de 1935, aqui deflagrada, como cenário pulsante. Longe de fazer apenas um relato histórico, o autor mistura ficção, personagens reais e imaginários, paixões, traições e crimes amorosos para dar corpo a esse episódio pouco conhecido fora das fronteiras do Rio Grande do Norte.
A Insurreição Comunista de 1935, também chamada de Intentona Comunista, foi um dos momentos mais dramáticos da história política brasileira. Em Natal, soldados do 21º Batalhão de Caçadores, aliados a civis comunistas, tomaram quartéis e chegaram a instalar um comitê popular revolucionário por cerca de 82 horas. No romance, Nei Leandro respeita o arcabouço histórico. Figuras reais aparecem com seus nomes, os eventos centrais são retratados, “mas não se trata de um romance histórico”, conforme está escrito na orelha da edição de 2003. Isso é importante, e é aí que entra uma dimensão essencial: a fábula romanesca.
Nei Leandro alterna a gravidade da revolta política com o banquete das pequenas intrigas pessoais. O romance se desenrola “antes, durante e depois” do levante e investe nas tramas humanas (amores, traições e crimes) mais do que numa reconstrução puramente documental, uma escolha da maior relevância, pois humaniza a insurreição e permite ao leitor entender que política não é abstração, mas carne, e dor, desejo e fraqueza.

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Um dos pontos mais altos da narrativa é como Nei Leandro retrata Natal como personagem viva. A cidade-arenosa, com suas dunas vermelhas (título do romance), funciona como metáfora para a instabilidade do momento, afinal dunas mudam com o vento, e a revolta também é moldada por forças invisíveis, por sopros ideológicos, ambições pessoais e contrapressões históricas. Essa construção topográfica-político-literária revela a maturidade do autor Nei Leandro não faz o levante ocorrer na trama, ele o sintetiza no espírito de Natal, e vice-versa.
No entrelaçamento de personagens reais e fictícios, o romance ganha sabor cinematográfico. Há figuras históricas, mas também homens e mulheres comuns envolvidos por acaso ou ideologia, por amor ou por conveniência, sem se prender à cronologia rígida. Os capítulos curtos da obra avançam com leveza, mantendo o ritmo, mas sem renunciar à densidade temática.
O humor é outro tempero decisivo; não se trata de zombaria leve, mas de um humor mordaz, que denuncia a hipocrisia da pequena província potiguar e o grotesco de certos discursos políticos. É como se Nei Leandro dissesse: “olhem para o absurdo das grandes paixões ideológicas, mas não esqueçam que elas nascem em corpos vulneráveis, afetados pelo ciúme, pela cobiça, pela traição.” Essa crítica irônica evita o maniqueísmo, porque os rebeldes não são heróis puros, nem os legalistas são monstros unidimensionais.
Do ponto de vista histórico, o romance cumpre papel duplo. Primeiro, reaviva um episódio muitas vezes esquecido: a insurreição de 1935, especialmente na versão potiguar, é tema raro na ficção brasileira. Segundo, capacita o leitor a refletir sobre os dilemas do poder, da militância e da utopia: Por que a insurreição fracassou? Por que faltava base popular? Houve apoio organizado? Qual a conexão nacional? No livro, há uma ambiguidade calculada: o levante é idealista, mas mal preparado; é grandioso na aspiração, mas “juvenil” nos meios. Essa ambiguidade remete a uma crítica mais ampla ao Brasil de sua época, e talvez ao Brasil pós-insurreição: a promessa revolucionária e seu risco de se dissolver em futilidades (paixões, covardias) ou, pior, se perder no autoritarismo. Nei Leandro não oferece respostas consoladoras e não dá lições definitivas – provoca mais e mais, sublinhando contradições, deixando o leitor em sobressalto. Em suma: Nei Leandro planta mais perguntas.
É um dos melhores romances nascidos da pena de um potiguar, mas há – e não poderia ser diferente – alguns pontos que podem ser criticados. A inserção de muitos personagens (reais e fictícios) causa certa dispersão narrativa, pois nem todas as linhas dramáticas têm o mesmo peso ou desenvolvimento, o que pode dificultar a empatia com alguns deles ou tornar a trama menos coesa para quem busca uma estrutura estritamente histórica. Por outro lado, esse é um defeito que talvez seja proposital, afinal uma revolta, por sua natureza, é caótica, multifacetada. Representar essa multiplicidade exige riscos. E Nei Leandro não foge deles.
Além disso, a conciliação entre humor e gravidade política nem sempre funciona com igual força em todos os capítulos. Há momentos em que a leveza romanesca parece suavizar demais as consequências trágicas da insurreição. Para um leitor interessado apenas no drama histórico ou na dimensão épica, pode haver um sentimento de amortecimento. Ainda assim, esse desnível também pode ser interpretado como estratégia literária, uma espécie de aviso de que a revolução, por mais séria que seja, convive com o banal, com o absurdo da vida cotidiana.
No balanço final, As dunas Vermelhas é um livro de vital importância para a literatura potiguar e brasileira. Nei Leandro de Castro consegue o feito de recontar a Insurreição de 1935 sem transformá-la em mero panfleto, mas preservando seu peso dramático e simbólico. Ele tece a memória coletiva e a história íntima, proporcionando uma leitura que é, ao mesmo tempo, romance político e crônica afetiva. A obra nos lembra que a revolução não é só um acontecimento externo, mas algo que habita os corações (e as dunas) de uma cidade. E que a luta política se dá tanto nas ruas quanto nos quartos, tanto nos discursos quanto nas traições passionais.