Quando a independência incomoda

por Sérgio Trindade foi publicado em 01.dez.25

Desde cedo, carrego esse vício inconfessável: a dissidência. Nunca tive vocação para desfilar em bloco, fazer coro ou bater palma em uníssono. Sou da espécie que perde o amigo, mas não renuncia à piada, e, quando muito, perde o amigo por causa da piada. A discordância, para mim, não é defeito, mas combustível de alta octanagem. Se me atacam, revido na mesma moeda, às vezes com juros, correção monetária e alguma insolência suplementar. Acovardar-me, ou esconder-me atrás do conforto morno de uma patota, não é do meu feitio. Sou assim, e arco, sem choramingo, com o preço dessa teimosia renitente.

Há quem veja, na mais simples discordância, a assinatura de um pacto com o inimigo. De repente, qualquer juízo crítico passa a cheirar a deserção. E, quando tudo se converte em militância, a independência, essa velha senhora que ninguém mais visita e nem mesmo cumprimenta, começa a parecer traição. Vivemos tempos em que se pretende substituir o debate pela fila indiana dos convertidos, como se a democracia fosse um quartel e seus cidadãos, soldados disciplinados de uma causa.

Há uns anos, um amigo de anos me surpreendeu com a ternura de sua indignação: “Você virou um fascista, vive de criticar Lula e é crítico feroz do PT. Por quê? Não te reconheço mais. Parece até que é financiado pela direita”. Uma ex-aluna, muito querida, disse-me num supermercado que uma sua colega de turma, que gostava de mim, estava indignada porque eu era de direita. Meu amigo e minha ex-aluna estão decepcionados comigo, porque acreditam piamente estar salvando o país de um apocalipse, e suspeitam que eu sou uma Besta. Isso diz muito sobre o espírito da época: ambos fazem parte de um time da política que exige fidelidade emocional e suspeita de qualquer voz que escape da liturgia da unanimidade.

Confesso: falo mal de Lula quando acho que devo. Não do cidadão, o qual não conheço e que vi somente duas vezes de perto; falo mal do homem público que nos deve explicações porque ocupa o centro da autoridade política do país, já foi deputado federal, já foi presidente de partido político, etc.

Digo sempre aos poucos que me ouvem e aos pouquíssimos que me leem que a crítica, quando honesta e fundamentada, não escolhe biografias – dirige-se a atos, decisões, omissões. E, na condição de quem está há mais três décadas estudando história e política, o mesmo tempo lecionando e duas décadas escrevendo semanalmente sobre a vida pública brasileira, seria incoerente calar agora depois de ter criticado os governos de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma, Temer, Bolsonaro e Lula novamente e, também, lideranças oposicionistas, instituições, imprensa e até o ativismo e a militância que se pretendem virtuosos por definição.

Mas, para alguns, a política virou uma luta metafísica entre o bem e o mal, um teatro de guerra em que a nuance desaparece e a divergência é logo interpretada como pacto com forças sombrias. Quando o mal chega à soleira de nossa casa, dizem, a única alternativa é trincar os dentes, expulsar qualquer fragilidade e desconfiar de tudo, sobretudo das vozes que não se alinham às fileiras. O equívoco está justamente na retórica épica, sedutora e perigosa. Não é necessário que todos estejam mobilizados, muito embora eu reconheça que pouca coisa é tão excitante quanto a presença de um inimigo monstruoso, uma criatura sempre à espreita, usada para justificar o medo e legitimar a raiva. É assim que, nas democracias fatigadas, a política se transforma em espetáculo moral, e cada lado se arroga o privilégio de ser o guardião da virtude.

A militância é legítima. A democracia, entretanto, não é salão de chá; ela precisa de quem erga bandeiras, lute por causas, vista a camisa do que acredita. Uma esfera pública, porém, não é feita só de militantes; se fosse, teríamos uma arena de facções. Uma esfera pública necessita de papéis que exigem distância, sobriedade, uma certa frieza analítica. Entre eles, o do crítico, sim, aquele que não pode vestir uniforme de nenhum esquadrão em luta, sob pena de perder justamente o que tem a oferecer, a saber, a autonomia, a independência.

É por isso que, se todos os intérpretes da política se transformarem em ativistas, a democracia encolhe e, no limite, morre. A crítica não existe para agradar lados, mas para iluminar práticas de poder, algo que tem faltado – e muito – ao jornalismo militante. Um crítico que se converte em propagandista perde o ofício, torna-se funcionário de interesses. E, quando isso acontece, o prejuízo é coletivo. O crítico é aquela fração ínfima da sociedade que exala diuturnamente lucidez, a mesma lucidez que é escassa na militância, porquanto ela, a militância, estar ocupada em vencer batalhas.

Quando a identificação emocional com um lado se intensifica demais, o pensamento se estreita. A autonomia, que deveria ser o bem mais precioso do intelectual público, desaparece num culto à coesão interna. Surge então a deferência às lideranças, o favoritismo às bandeiras e, claro, a hostilidade inflamada contra o outro lado. Esse ambiente, incapaz de lidar com ambiguidades, exige lealdades rígidas e pune qualquer nuance como se fosse heresia. Por isso, meus três ou quatro leitores, desconfie – e aqui falo com a serenidade de quem aprendeu a observar a política pela sua geologia lenta – dos analistas sempre alinhados, sempre cúmplices, sempre afinados com o coro. Os que nunca se permitem desafinar. A crítica que nunca contraria seu próprio grupo já não é crítica, mas serviço prestado.

Imagem feita com auxílio de IA

Não se trata, friso, de defender o prazer em desagradar. A crítica não é um esporte de provocar irritações. Digo isso com certo dó, porque, confesso, sinto certo prazer em desagradar, porque desagradar é, quase sempre, efeito colateral inevitável da honestidade intelectual. Quem escreve para servir à democracia – e não às paixões do leitor – sabe que a frustração é parte desse ofício.

Vivemos, infelizmente, num país em que quase todos se tornaram militantes de alguma coisa, e a política, reduzida a identidades em disputa, cobra dos críticos um pertencimento que eles não podem e nem devem oferecer. Assim, quando alguém preserva sua independência, inevitavelmente frustra os que esperam a confirmação de seus dogmas. No fim, o que ameaça à democracia não é o crítico que se recusa a vestir uniforme, mas o ambiente que transforma desacordo em pecado e autonomia e indpendência em deserção. A democracia, essa senhora teimosa, não pede amor incondicional; ela pede vigilância, discernimento, pluralidade. Pede que a sirvam, e não que a substituam pelas paixões do momento.

Sirvo à democracia sem servir às bandeiras de quem me lê (pouquíssimos) e de quem me ouve (alguns).

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