A reinvenção do achamento: Lenine Pinto e a pequena revolução da geografia histórica
Escrevi há uns dias, de forma genérica, sobre o tema (https://historianosdetalhes.com.br/historia-do-rn/o-achamento-reinventado-das-brumas-do-atlantico-a-geografia-da-controversia/) e volto a ele de forma mais detida para marcar, de forma nítida, uma posição.
No Brasil das grandes datas e das certidões de nascimento nacional, as narrativas fundadoras gozam de estatuto quase místico, viram selos de identidade coletiva, mapas de pertença que raramente se aceitam questionados. Diante desse cenário, o gesto intelectual de afirmar que onde nos dizem que tudo começou não foi exatamente onde começou tem, por força, o mesmo efeito de jogar um pedra num lago calmo, formando ondas, ruídos, convulsões… Foi com essa pedra na mão que Lenine Pinto colocou, há quase três décadas, no centro do debate uma hipótese que parece ter nascido de um namoro íntimo entre gazeta local e mapa antigo. Segundo o pesquisador, o Brasil não teria nascido – ou não teria sido primeiramente avistado – em Porto Seguro, Bahia, mas numa esquina do litoral Atlântico, no extremo norte-oriental da América do Sul, mais precisamente onde hoje é o Rio Grande do Norte.

Imagem feita com auxílio de IA
Dizer isso, nos anos 1990, equivalia a atravessar uma fronteira simbólica. A versão oficial do Descobrimento consolidada por séculos, celebrada em museus, decorada em livros escolares e sacralizada em comemorações públicas, não era uma simples tese acadêmica entre outras, mas a certidão de nascimento Brasil. Desgastar e mesmo negar essa certidão, sugerir que as coordenadas deveriam ser rebobinadas, confrontar léguas e correntes, foi o que Lenine se propôs a fazer em Reinvenção do Descobrimento (1998) e, depois, em livros subsequentes como Mando do Mar, ousadia que merece ser lida em duas chaves, como trabalho de corte localista, aferrado à geografia de uma terra que quer contar sua própria primazia e como esforço metódico para reler fontes, medir distâncias, interpretar correntes e reavaliar símbolos de posse. As duas chaves importam para compreender o furor que se seguiu.
A pergunta que atravessa essas páginas e que justificaria qualquer estudo honesto sobre a questão é simples e rude: Que peso têm as evidências quando a tradição pende para um lugar confortável? Porque há, no caso, evidências concretas a serem avaliadas, tais como as descrições do escrivão Pero Vaz de Caminha, as anotações de Mestre João Faro, os padrões de posse (os marcos de pedra), as cartas náuticas e, não menos importante, as dinâmicas físicas do oceano que, como veremos, não obedecem a afetos regionais. Lenine, com o vigor do repórter, a paciência do colecionador de mapas e a coragem do pesquisador-desbravador, lançou mão exatamente desses instrumentos. O argumento, reduzido à sua espinha dorsal, articula:
1) as correntes e ventos que regem o Atlântico Sul tenderiam a empurrar embarcações para a latitude do Rio Grande do Norte;
2) a elevação descrita por Caminha – a “um grande monte, mui alto e redondo” – seria compatível com o Pico do Cabugi, não com o Monte Pascoal;
3) a menção a aguadas e rios junto à praia se ajustaria melhor às feições costeiras potiguares (e até alagoanas) do que ao recorte baiano;
4) os padrões de posse (o Marco de Touros, por exemplo) e a distância percorrida até o segundo padrão, em Cananeia (SP), encaixar-se-iam mais racional e logicamente numa partida desde o extremo norte do que desde Porto Seguro.
É uma cadeia de hipóteses cruzadas, que procura coerência entre texto, pedra e navegação e, aqui, faço um breque no texto para lembrar que todo revisionismo tem dois humores: o cético e o jocoso. O historiador que se predispõe a desconstruir consensos escuta, com frequência, tanto o argumento como o riso, e o riso no caso de Lenine teve formas várias. Nos corredores acadêmicos e nas páginas da grande imprensa, a apresentação inicial da tese foi vivida com uma mistura de indulgência condescendente e ironia fina. Ouvi muito, nos corredores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), doutos doutores e alunos de graduação ironizando, debochando e rindo às escâncaras. Lenine foi, por vários anos, classificado mais como “solitário defensor”, “pesquisador amador” ou curioso obstinado do que como um autor merecedor de discussões mais aprumadas. O título de “amador” atravessa com efeito as reações; houve gracejos, notas de rodapé sarcásticas, colunas que aplaudiam, em tom de galhofa, a nostalgia local por um passado fundante e reportagens que tratavam a ideia como um folclore revisitado. Parte dessa recepção, impiedosa ou bem-humorada, vinha de uma impossibilidade prática: mexer na certidão de nascimento do país exige não apenas argumentos, mas também instrumentos científicos capazes de colocar o debate fora do plano da anedota. Ainda assim, a caricatura do pioneiro solitário colecionador de mapas tem servido, ironicamente, para amplificar a visibilidade da tese.
Olhemos com mais atenção e percebamos que as ironias e gracejos nunca foram apenas maldade gratuita. Eles mostravam uma reação institucional, pois universidades e grande mídia, confortadas por séculos de narrativa hegemônica e por arquivos que consolidam o imaginário nacional, não tratam a questão com o mesmo afã de um tema convenientemente local. A resistência intelectual inicial não foi, portanto, apenas estético-ridicularizante, mas institucional e metodológica. Lenine, homem do jornalismo, trazia uma proposta interpretativa que misturava erudição de arquivo, leitura navy-forense (leitura rápida, estratégica e minuciosa, que junta disciplina militar à atenção aos detalhes exigida na ciência forense) e entonação de tribunal, sublinhando uma falha das instituições, a saber, a ausência, na hora de reabrir as fontes primárias, do gesto paciente e multissetorial que redesenharia o mapa do achamento.
O tempo fez o seu trabalho, os muros do ceticismo começaram a ceder e a virada mais decisiva e, talvez, a que confere ao debate uma nova seriedade científica ocorreu quando pesquisadores de áreas distantes da história, físicos e especialistas em geoprocessamento, voltaram seus instrumentos para a carta de Pero Vaz de Caminha.
Em 2024, dois pesquisadores ligados às universidades federais do Rio Grande do Norte e da Paraíba publicaram um estudo no Brazilian Journal of Science no qual aplicaram técnicas modernas (SIG, GPS e batimetria por satélite) para analisar as referências geográficas da carta, convertendo braças e léguas em metros e testando a coerência das leituras tradicionais com modelagens oceanográficas e geoespaciais. Assinam o trabalho Carlos Chesman de Araújo Feitosa (Departamento de Física-UFRN) e Cláudio Benedito da Silva Furtado (Departamento de Física-UFPB). O ensaio científico não pretendeu, de início, provar com letra maiúscula o Descobrimento no Rio Grande do Norte, mas verificar se as descrições de Caminha e os condicionantes oceanográficos da época eram compatíveis com a hipótese potiguar. Os resultados abrem a porta para uma nova leitura: o Monte Pascoal corresponderia, segundo a modelagem, à Serra Verde (próxima a João Câmara-RN), o desembarque plausível situar-se-ia na foz do rio Punaú (Praia do Zumbi) e a ancoragem inicial, na Praia do Marco, todos locais no litoral norte do Rio Grande do Norte. É um salto metodológico, porquanto as palavras de um escrivão estarem postas sob as lentes de satélites e modelos físicos (file:///C:/Users/sergi/Downloads/Article685%20(3).pdf).
A inclusão de física e geotecnologias na mesa de discussão representa uma mudança de paradigma. Passamos do duelo erudito entre mapas e cronistas a uma interdisciplinaridade que obriga a história a tornar-se quase empírica no sentido contemporâneo. Não que a história deva perder seu estatuto interpretativo, mas é necessário entender que ela se beneficia quando renuncia à exclusiva autoridade textual e aceita o diálogo com coordenadas físicas. A postura de Feitosa e Furtado foi a de quem constrói hipóteses testáveis, com limites explicitados e cautelas metodológicas, reconhecendo, por exemplo, as alterações costeiras ao longo de cinco séculos e a margem de erro inerente à conversão de antigas medidas náuticas. Ainda assim, a simples possibilidade de a carta de Caminha manter coerência física com a costa potiguar foi suficiente para que o debate acadêmico e midiático reacendesse.
Recordemos os elementos materiais do argumento potiguar, os quais, tomados em conjunto, conformam a lógica de Lenine e que, em menor ou maior medida, foram revisitados por pesquisadores posteriores:
1) a descrição de “um grande monte, mui alto e redondo” e de serras ao sul dele;
2) a menção a “aguadas” e rios que correm junto à praia;
3) a recorrência de padrões de posse em pedra lioz (Marco de Touros) com inscrição e iconografia semelhante ao padrão de Cananeia;
4) a distância percorrida para fincar o segundo marco, que corresponderia melhor a um primeiro marco fincado no litoral setentrional;
5) as correntes e ventos locais, que, por sua dinâmica, tenderiam a aproximar uma frota numa rota de ida direta ao Cabo da Boa Esperança à latitude do Rio Grande do Norte antes de uma inflexão para o sul.
Separados, qualquer um desses pontos é discutível; unidos, oferecem uma coerência retórica que merece exame.
Não convém, entretanto, transformar discussão em liturgia, afinal o revisionismo de Lenine não é um salvo-conduto automático contra todas as leituras contrárias, e os defensores da Bahia contam, com razão, com fontes e leituras que continuam a apontar Porto Seguro como locus plausível. Mestre João Faro, ao medir a altura do sol, anotou 17º de latitude sul, leitura que aproxima o Monte Pascoal de Porto Seguro. Críticas técnicas à tese potiguar citam, com frequência, tais leituras astronômicas e as lacunas inerentes à conversão de léguas e braças. Além disso, o abraço afetivo que populações locais dão à ideia de “nascermos aqui” não determina a verdade histórica, apenas dita a potência simbólica da questão. A história, ressalto, não é um tribunal no qual a última palavra de um lado anula a anterior do outro; é, antes, um campo de razões no qual várias evidências se confrontam. Nessas condições, a tese potiguar funciona como um estimulante, pois força os historiadores a revisitar fontes, convida geógrafos e físicos a traduzir margem de erro em modelos quantitativos e obriga museus e arquivos a suspenderem, por momentos, o conforto dos cânones.
A trajetória de Lenine, da devoção à geografia local ao reconhecimento tardio, é também um caso paradigmático sobre como as periferias intelectuais se tornam centrais quando a universidade cede espaço à curiosidade bem fundamentada. Nos primeiros anos, Lenine foi tratado com benevolente circunspeção e, não raro, com desdém. “Amador”, escreviam alguns. “Intrépido sonhador”, murmuravam outros. Mas a perenidade de sua insistência, livros que se seguiram, réplica de mapas e comparações criaram uma tradição de pesquisa regional que acabou por ser recuperada e ampliada por grupos acadêmicos. A reedição de Reinvenção do Descobrimento em 2022 e as campanhas locais de valorização do argumento demonstram que a provocação de Lenine deixou de ser apenas folclore e tornou-se objeto de escrutínio. A história, enfim, parece dar aos que insistem a oportunidade de virar matéria de estudo.
Há uma lição mais ampla aqui: a história nacional, por mais canônica que seja, é um tecido de traduções, de léguas em quilômetros, de dizeres náuticos em geodésicas, de relatos de bordo em imagens de satélite. O papel do intelectual público, do jornalista que se transforma em historiador por curiosidade e dever de memória, é não preservar estatuetas, mas forçar a reabertura do arquivo. Lenine fez exatamente isso. Ele não substituiu, de um dia para o outro, a certidão de Porto Seguro por outra, apenas colocou no centro da praça o mapa, a pedra e a régua, e disse: “Vamos medir outra vez”. Era um convite desafiador e, como todo convite radical, incomodou.
O que se passou depois é matéria de um novo capítulo. Universidades que antes ignoravam o tema passaram a publicar artigos interdisciplinares, a imprensa regional começou a promover mesas redondas, campanhas culturais, como aquela que proclamou “Tudo Começa Aqui” no Rio Grande do Norte ganharam vulto, e o debate público se expandiu. A publicação dos físicos Chesman (UFRN) e Furtado (UFPB) consolidou um movimento iniciado por Lenine e agora sedimentado por métodos científicos. Não se trata de decretar um vencedor, mas de abrir o campo para que a história, uma disciplina cuja riqueza reside na imprecisão e na complexidade, funcione de forma plural e honesta.
E as ironias que então rodearam Lenine? Permanece uma ironia, quase um aceno póstumo de justiça, em ver o solitário sarcástico transformado em vetor de pesquisa interdisciplinar. Aqueles que riam da sua ousadia testemunham agora relatórios acadêmicos que deslocam a disputa do plano retórico para o técnico. Não que a risada tenha desaparecido. Ironia e gracejo são recursos culturais resilientes, mas o triunfo está noutro lugar, a saber, no fato de que a pergunta foi tomada a sério por instrumentos que Lenine não poderia, num primeiro momento, mobilizar sozinho. A imagem do cronista que, com mapas na mala e teimosia na caneta, desafia institutos consagrados é sobretudo um exemplo de como o saber público se renova.
Se formos pedestres e pragmáticos, há um desfecho provisório que podemos aceitar sem ferir a sensibilidade histórica: a hipótese potiguar deixou de ser mera curiosidade regional e passou a integrar o repertório de hipóteses seriamente sustentadas. Não há – e talvez nunca haverá – um veredito final e unânime, porque a história, longe de um corpo de leis, é uma conversa sem última palavra.
O mérito de Lenine foi o de propor uma nova geografia do achamento e obrigar a ciência, a universidade e a imprensa a fazer o que deveriam fazer sempre que uma proposição ou pergunta audaciosa surja: interrogá-la com rigor, testar suas premissas, medir seus parâmetros, admitir incertezas e, quando necessário, mudar de opinião. Esse é o cimento da investigação. E é também – por que não o dizer? – a maneira mais limpa de honrar os documentos antigos, não por fidelidade acrítica, mas por leitura exigente.
É importante, para a comunidade nacional, descobrir se o batismo inaugural dos portugueses aconteceu em Porto Seguro, Coruripe (o livro História da civilização alagoana, de Jayme de Altavila, publicado em 1938, registra que o local do Descobrimento é Alagoas, mais precisamente nas falésias de Coruripe) ou Praia do Marco. O valor é simbólico e identitário, pois lugares querem ser pais do país. Há também um valor epistemológico, o de reconhecer que a incerteza das narrativas fundadoras é um exercício de maturidade intelectual de um povo que, em vez de se refugiar em mitos, aprende a conviver com dúvidas e evidências. Lenine Pinto, com sua insistência e suas provocações, e os pesquisadores que depois traduziram sua inquietação em modelos e artigos, ofereceram-nos a oportunidade de praticar essa forma de maturidade.