As janelas fechadas do palácio invisível

por Sérgio Trindade foi publicado em 05.dez.25

O roteiro é enxuto e eloquente. Três movimentos, três gestos, três pequenos monumentos à autossuficiência do poder. Em sequência, um ministro ergue a bandeira dos supersalários, uma jabuticaba dourada que floresce nos contracheques de Brasília, outro sela sob sigilo um caso de auditoria que clama por luz e um terceiro, com a elegância de quem despacha correspondência trivial, fulmina pedidos de impeachment como se pusesse ordem em papéis acumulados sobre a mesa. Não se trata de extravagâncias isoladas, mas de sintomas reiterados de uma patologia crônica: a transformação do Estado de Direito em Estado de Direito-Para-Si.

É nesse ambiente que viceja a nova “normalidade” do Supremo Tribunal Federal (STF), o tribunal que um dia se esforçou para manter o papel de árbitro, mesmo quando o país, diziam, parecia uma partida jogada no escuro, assumiu, por necessidade ou gosto, um protagonismo que o aproximou perigosamente da política. E, como todo ator que descobre o palco, não raro parece achar que a peça não anda sem ele. O fenômeno não nasce do nada. O ano de 2019 marcou um divisor de águas, a saber, o inquérito das fake news, apresentado como último bastião salvador contra o caos, foi a porta de entrada para uma modalidade de ação judicial que combina investigação, acusação e julgamento sob um mesmo teto. Ali, o STF deu o primeiro passo para transformar o excepcional em permanente, e, uma vez atravessado o Rubicão, não parece ter encontrado motivos para voltar.

Imagem feita com auxílio de IA

O Poder Moderador, aquele fantasma que ronda a história brasileira desde o Império, encontrou no atual STF sua versão republicana. Não oficialmente, afinal o Brasil não admite títulos tão explícitos. Mas é impossível ignorar o parentesco, pois quando um poder se investe da missão de equilibrar os demais, julgando, intervindo, abrindo inquéritos, fechando portas e trancando janelas, o que se tem não é exatamente arbitrariedade, palavra pesada, mas algo mais leve, embora igualmente perigoso: a convicção sincera de que só ele sabe o que deve ser feito. A fronteira entre zelo institucional e zelo por si mesmo torna-se sutil a ponto de sumir.

E é aí que sobressai o mais pitoresco dos episódios, o da defesa dos supersalários. Há nela um quê de autoconfiança imperial, uma afirmação de que o país pode bem viver de arrochos e contingenciamentos, desde que ninguém toque no conforto dos que zelam pelo equilíbrio institucional. Já o sigilo no caso do Master constitui a cortesia habitual, ou seja, esconder a poeira debaixo do tapete até que se decida se é poeira mesmo ou algo mais incômodo. O efeito combinado é a construção de um ambiente em que a transparência é sempre desejável, exceto quando não é.

Mas, para além do que fazem os poderes, chama a atenção o que deixam de fazer as vozes habituadas a nos instruir sobre o bem e o mal da vida pública. Onde se escondeu a nossa casta cultural, sempre pronta a erguer cartazes, proclamar manifestos e chamar para marcha aqueles que, por hábito, marcham? Os nomes conhecidos, aqueles que nos servem de bússola moral nos momentos de comoção, parecem ter entrado em recesso quando o desconforto vem de onde eles prefeririam que não viesse. A experiência ensina que não se trata de esquecimento, mas de cálculo. A indignação, ao contrário da eletricidade, não se produz de forma espontânea. Ela precisa de motivação, de conveniência, de oportunidade, e oportunidades, neste caso, parecem escassas.

A explicação, embora desagradável, é simples. A crítica ao poder judicial em sua versão expansiva não rende dividendos no Fla-Flu ideológico que move, com frequência comovente, a intelectualidade progressista. Criticar o Judiciário é arriscar-se a fortalecer adversários políticos que se deseja manter enfraquecidos. O silêncio é, então, o tributo que se paga à conveniência. Afinal, moral é bom, mas utilidade é melhor ainda. Não nos enganemos: a elite cultural não se julga guardiã abstrata da democracia, ou melhor, julga-se, apenas e tão-somente quando a democracia coincide com seus afetos e medos. Quando não coincide, cala. Nada mais humano, embora nada mais revelador.

O resultado desse arranjo é o que se poderia chamar de “barco que já zarpou”. Não há retorno simples ao passado de comedimento institucional. Um poder, uma vez habituado a agir como indispensável, tende a se considerar indispensável. E a sociedade, que deveria se encarregar de ajustar seus excessos, terceiriza sua vigilância para quem tem seus interesses próprios a vigiar. Resta ao cidadão-contribuinte, o eterno pagador da conta e espectador da ópera, a amarga constatação de que no Brasil a coerência é artigo raro, e a indignação, bem de luxo. Esperar perfeição dos poderosos é ingenuidade, esperar coerência dos que os aplaudem, temeridade ainda maior. Aqui, onde a normalidade é sempre promessa e jamais estado, a perplexidade é o único sentimento verdadeiramente democrático

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