A ética que só existe no palco
A frase “o PT é uma UDN de tamanco”, atribuída a Leonel de Moura Brizola, não nasceu como pilhéria de comício nem como maldade improvisada. Foi dessas frases que a política brasileira produz raramente: duras, sintéticas e incômodas. Uma espécie de radiografia feita antes do acidente. Brizola enxergou o osso fraturado quando ainda se discutia a elegância da roupa. Como toda verdade que chega antes da hora, foi descartada como exagero, ressentimento ou intriga. O tempo, um cínico sem filiação partidária, encarregou-se de conferir autenticidade à autópsia.
A União Democrática Nacional (UDN) surgiu em 1945, quando o país tentava reorganizar a vida democrática após o Estado Novo, a ditadura varguista. Era um partido de oposição por vocação e de poder por desconfiança. Reunia liberais clássicos, conservadores urbanos, bacharéis da política e setores médios que viam no varguismo uma ameaça moral antes mesmo de ser um problema administrativo. A UDN construiu sua identidade menos a partir de um projeto positivo de governo e mais pela crença de que existia uma reserva moral da República, da qual ela se julgava depositária natural.
O moralismo udenista não era um detalhe lateral; era sua argamassa. A ética funcionava como capital simbólico, como instrumento de distinção. Governar parecia sempre secundário; denunciar era essencial. A UDN falava como quem jamais pisaria na lama – e, quando a lama venceu o discurso, não hesitou em flertar com a ruptura institucional. Em nome da moral, acabou legitimando a exceção. Caiu proclamando pureza, mas deixando como herança uma profunda desconfiança em relação à política de massas.
Décadas depois, no final da década de 1970, em contexto histórico distinto embora com nuances próximas, nascia o Partido dos Trabalhadores (PT). O PT veio ao mundo como um produto de confluência rara: sindicalistas do ABC paulista, setores progressistas da Igreja Católica, intelectuais de esquerda e militantes marcados pela experiência da repressão. Diferentemente da UDN, o PT nasceu como partido de base, com forte enraizamento social e discurso de ruptura com a tradição política brasileira. Queria apenas disputar eleições, porém, antes disso, queria reinventar a política.
A ética, desde o início, ocupou lugar central no projeto. O PT não se apresentava apenas como partido honesto, mas como partido ontologicamente distinto. A moral era limite e, ao mesmo tempo, identidade. Não queria só fazer política corretamente, mas de ser moralmente superior. Quem discordava estava, segundo os petistas, errado e corrompido. Quem criticava não era adversário legítimo; era inimigo da História. Nesse ponto, já se anunciava uma armadilha clássica.
Nicolau Maquiavel, quase cinco séculos antes do nascimento da UDN e do PT, havia alertado que a política não se move no terreno da pureza, mas no da eficácia. Ao discutir a relação entre virtù e fortuna, ele deixou claro que a virtude política não é sinônimo de bondade moral, mas de capacidade de agir conforme as circunstâncias, enfrentando ou dominando os caprichos da fortuna. O governante que se agarra à moral privada como bússola absoluta tende a ser derrotado não por ser mau, mas por ser inábil. A política exige flexibilidade, leitura do tempo, coragem para decidir no terreno do imperfeito.
O PT, em sua fase de formação e consolidação na oposição, cultivou uma ideia de virtude muito mais próxima da moral cristã do que da virtù maquiaveliana. Era a ética da intenção, da convicção, da promessa de redenção. Funcionou como discurso, sobretudo em contraste com a política tradicional. Entretanto, como ensinaria mais tarde Max Weber, a ética da convicção, quando isolada da ética da responsabilidade, costuma produzir tragédias políticas – e ainda permite que seus agentes durmam com a consciência tranquila.
Weber advertia que governar é assumir as consequências dos próprios atos, inclusive aquelas que contradizem intenções originais. O PT, ao chegar ao poder, encontrou exatamente esse dilema. O presidencialismo de coalizão impôs alianças, negociações, concessões. Nada disso era novidade na política brasileira. A novidade foi a tentativa de preservar o discurso da exceção ética enquanto se praticava a política possível. O partido não abandonou o moralismo, apenas o redecorou.
O Mensalão foi o primeiro grande abalo dessa construção simbólica. Não se revelou ali que o PT fazia política como os outros, afinal isso sempre foi sabido por quem conhece Brasília. O que veio à tona foi a contradição entre prática e discurso. A hipocrisia não estava no ato, mas no sermão. O Petrolão, anos depois, aprofundou a fratura. Ali ruiu o mito fundador. A ética deixou de ser bandeira e passou a ser problema explicativo.
É nesse ponto que a contribuição de Robert Michels se torna inevitável. Sua lei de ferro da oligarquia ensina que toda organização que cresce tende a concentrar poder e toda concentração de poder gera elites internas e toda elite age em defesa de seus próprios interesses. O PT, que nascera combatendo as oligarquias, acabou produzindo as suas. Não por desvio moral excepcional, mas por dinâmica organizacional previsível. A tragédia não foi confirmar Michels, mas fingir que ele não existia.
Antonio Gramsci ajuda a completar o quadro. Ao refletir sobre o Príncipe moderno, Gramsci atribui ao partido político o papel que Maquiavel conferia ao príncipe: organizar a vontade coletiva, construir hegemonia, traduzir interesses sociais em projeto político. O partido, nesse sentido, não é uma confraria moral, mas uma máquina histórica de poder. Precisa combinar coerção e consenso, ética e eficácia, princípios e estratégia. Quando um partido se recusa a reconhecer essa condição, tende a se perder no moralismo ou no cinismo.
O PT, ao longo do tempo, oscilou entre esses polos. Em vez de assumir plenamente o papel gramsciano de príncipe moderno, com suas responsabilidades, limites e contradições, preferiu muitas vezes preservar a imagem de movimento moralmente superior, mesmo já sendo partido de governo. O resultado foi uma dissonância crescente entre identidade e prática. A ética, que deveria orientar a ação, transformou-se em escudo retórico.

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A comparação com a UDN, portanto, não é mero exercício retórico. Os dois partidos, em contextos distintos mas de certa forma próximos, fizeram da moral um palanque permanente. Ambos acreditaram que a virtude podia substituir a política. Ambos descobriram que a política, quando negada, cobra juros altos. A UDN terminou associada à ruptura institucional; o PT, a uma crise profunda de credibilidade. Um caiu acusando os outros; o outro caiu e segue em queda tentando explicar a si mesmo.
Brizola, ao formular sua frase incômoda, não negava as diferenças sociais, ideológicas e históricas entre PT e UDN. Apontava algo mais profundo, a saber, a tentação recorrente de transformar a ética em identidade e a política em espetáculo moral. O problema nunca foi o pecado, porque pecar, em política, é condição necessária – e humana. O problema foi a pose de santo.
Maquiavel ensinou que governar é lidar com a fortuna. Weber lembrou que agir politicamente é assumir consequências. Gramsci advertiu que o poder exige organização e hegemonia. Ignorar essas lições não torna a política mais pura e, sim, mais hipócrita. No Brasil, a virtude exibida em excesso costuma terminar em vexame. Talvez porque a política, como a vida, desconfie dos puros demais. E talvez porque, no fundo, nada seja mais obsceno do que a ética transformada em palanque.