Malu Gaspar: o império das sombras e a liturgia da reportagem
Há uma estranha patologia acometendo a inteligência brasileira: a de confundir o exercício do jornalismo com o adestramento das assessorias. Vivemos o tempo das vozes amestradas, quando a notícia, antes de ser fato, precisa passar pelo crivo das conveniências ideológicas. A polêmica que se abate sobre a jornalista Malu Gaspar, por ter revelado as pressões de um ministro da Suprema Corte em favor de interesses privados, é o sintoma clínico de uma democracia que trocou os princípios pelo sectarismo. Quando o jornalismo faz o seu trabalho, o de inquirir, cruzar dados e desvelar o que o poder esconde, a turba se enfurece. É o mundo do avesso, no qual a luz da reportagem é tratada como um crime de lesa-majestade.
A tragédia do nosso tempo é que a polarização transformou a defesa das instituições em uma licença para o desvio de conduta. Sob o pretexto de salvar a democracia, aceita-se a erosão da ética. As fontes de legitimidade, como bem ensina a sociologia da comunicação, deslocaram-se dos princípios universais para o campo magnético do líder de turno. Para muitos, a moralidade tornou-se uma questão de geografia política. Se o desvio ocorre no meu quintal, é estratégia; se ocorre no vizinho, é corrupção. Nesse cenário, o presidencialismo de coalizão brasileiro, hoje mergulhado em uma crise profunda de moralidade, transformou o Judiciário não em um árbitro, mas em um balcão onde o império da lei é negociado entre jatinhos e banquetes.
É preciso, entretanto, restabelecer a obviedade: jornalismo não é opinião, é método. O que Malu Gaspar entregou ao público não foi uma “acusação” vazia, mas uma reportagem investigativa erguida sobre o pilar da apuração rigorosa. O profissional arca com as consequências do que revela; sua proteção reside na técnica. Gaspar utilizou o cânone clássico: inquirir fontes distintas, cruzar versões, checar documentos e confrontar as contradições.
Para os que hoje, na esquerda ou no ativismo digital, destilam fúria contra a jornalista, convém um choque de realidade histórica. O escândalo de Watergate, que derrubou Nixon, não teria existido se dependesse do silêncio cúmplice daqueles que preferem a cegueira seletiva. Watergate foi a era dos decididos, o ápice do que Wright Mills chamaria de enfrentamento à elite do poder. Lá, como aqui, o método foi o mesmo, a saber, seguir o rastro das pressões indevidas. A diferença – e que diferença amarga! – é que Watergate floresceu em um solo no qual a Suprema Corte não viajava em jatinhos de réus, nem ministros eram compadres do Executivo. No Brasil de hoje, o combate à corrupção foi transmutado em crime, e a norma tornou-se a vingança institucionalizada.
Sob a ótica da deontologia jornalística, a obrigação primordial é com a verdade factual. O jornalista não é, ou não deveria ser, um cheerleader de magistrados. Quando Malu Gaspar expõe as vísceras de uma pressão indevida, ela exerce a função de Watchdog (o cão de guarda da sociedade). Na teoria de Jürgen Habermas, a esfera pública só é saudável quando a informação flui sem os filtros da censura prévia ou do medo. Ao atacar Gaspar para defender Moraes, os críticos cometem um erro estratégico e dão um tiro-no-pé monumental, pois entregam munição aos que creem que a justiça atua por viés partidário. Se a defesa da democracia exige o silêncio diante do erro, então o que se defende não é a democracia, mas uma ditadura de conveniência.
O aporte teórico da sociologia de Pierre Bourdieu nos ajuda a entender o campo jornalístico como um espaço de luta por autonomia. Malu Gaspar representa a resistência dessa autonomia. Ela rompe o habitus do conluio que domina as redações transformadas em extensões de gabinetes. É curioso notar que os mesmos que exigem provas da jornalista são os que ignoram a inversão do ônus da prova na vida pública brasileira. Ora, a reportagem estabeleceu os fatos e as versões; cabe agora às instituições investigar. Mas como esperar investigação quando o investigador é sócio do investigado?
Vivemos um momento em que a concentração de poder destruiu o império da lei. No Brasil, as fontes de legitimidade não emanam mais da Constituição, mas da cor da bandeira que se carrega. É o que a sociologia política define como a degradação das instituições. Quando o Judiciário se torna um ator político pleno, ele perde a sua capa de imparcialidade e passa a ser julgado pelos métodos da política – e a reportagem de Malu Gaspar é o espelho que reflete essa imagem deformada.

Imagem feita com auxílio de IA
O texto de Malu Gaspar é um exercício de sobriedade em meio ao delírio. Ela não se deixou seduzir pela facilidade do ativismo; manteve-se fiel à técnica de inquirir e duvidar. É o jornalismo de resistência intelectual, que não aceita o preço a pagar pela moralidade quando esse preço é o sacrifício da própria verdade. Se o Brasil ainda pretende ser uma democracia, ele precisa de mais reportagens e menos assessorias disfarçadas de colunas.
A solidão de Malu Gaspar neste episódio é a solidão da própria ética. É a dureza de quem escolhe o caminho estreito do fato contra a avenida larga da lisonja. A correção de sua postura reside na recusa em ser parte do balcão de negócios. Ela nos lembra que o jornalismo, quando é digno do nome, não serve para apaziguar os poderosos, mas para inquietá-los (vale a máxima de Millor Fernandes, para quem “jornalismo é oposição e o resto é armazém de secos e molhados”). Portanto, punir Malu pelo desconforto da notícia é como quebrar o termômetro para curar a febre.
Watergate começou com a teimosia de quem não aceitou a versão oficial. A história brasileira, em sua marcha errante, ainda haverá de reconhecer que o erro não estava na caneta que denunciou, mas no martelo que pressionou fora dos autos. Sem o rigor da técnica e a coragem do desvelamento, restará apenas o silêncio dos cemitérios das democracias perdidas.