O governador é o homem mais feio do estado!
O golpe, veja bem, começou com as melhores das intenções, como toda lambança institucional. A ideia era só dar um tapa na vida pública, tirar os demagogos da sala e pronto. Um ano, talvez dois, e a gente devolvia a chave. Mas a história, como sempre, tem mais fases do que a gente espera, e o que era um saneamento rápido virou um arrastar de pernas de duas décadas.
Para não ficar feio no álbum de família das nações – ou, o que é pior, para evitar o rótulo indigesto de ditadura –, os novos donos do poder fizeram uma maquiagem. Montaram um circo completo: três poderes, eleições, jornal que fingia ler, tudo funcionando. Um simulacro de democracia que engabelou muita gente que, convenhamos, já queria ser engabelada.
Acontece que, perto de fazer aniversário de maioridade, o regime patrocinou mais um daqueles arranjos que, com muito esforço, podíamos chamar de eleição. Indireta, claro. Porque quando o povo era chamado para votar de verdade, os chefetes de ocasião e seus prepostos levavam surras homéricas. A oposição, mesmo capenga, vinha varrendo as urnas diretas.
Mas nem na moita, na eleição indireta, a coisa estava fácil. Começou a dar trabalho, a exigir costura prévia, um bordado político intrincado para garantir que os aliados vencessem. O grito de guerra era “pacificar os estados”, o que, traduzindo do dialeto oficial, significava evitar que os grupos oligárquicos, invariavelmente familiares, começassem a se amotinar e resolvessem levar o radicalismo tosco e pueril para as províncias. Era um xadrez complicado: as oligarquias estaduais eram, via de regra, aliadas do regime em Brasília, mas inimigas de morte nos seus próprios quintais. A sobrevivência política do autoritarismo dependia que a briga de galinhas nos estados não descambasse.
Em Pedroboolândia, um desses estados onde a miséria era a paisagem mais comum, a eleição transcorreu sem maiores sobressaltos. Os dois grupos mais poderosos, adversários figadais na hora de apoiar ou não o governo federal, resolveram dar as mãos no palanque para garantir o governador e o senador eleitos. Foi, na história, a última eleição indireta para o cargo.
Um jornal importante, do estado mais rico e barulhento do país, designou sua tropa de repórteres para entrevistar os recém-eleitos, quase todos do partido da situação. Para Pedroboolândia, a terra do esquecimento, sobrou Pietro Elias, um jovem descendente de italianos, idealista e meio avoado. Criado pela nona, o máximo que ele tinha conhecido de mundo era a barra da saia dela. Sonhava em fazer entrevistas que revelassem quem eram de verdade aqueles futuros governadores.
O jovem embarcou da metrópole em direção à provinciana capital de Natividade. Desceu no aeroporto acanhado, vizinho à base aérea, e o pânico: esqueceu o papel com o endereço e o nome da pessoa que daria acesso ao eleito. Ligou para a sede do jornal. A secretária, talvez já acostumada com a incompetência burocrática da transição, sugeriu: “Olha, o endereço da equipe de transição eu tenho. Não se preocupe, é fácil você identificar o homem. Ouvi dizer que o governador é o homem mais feio do estado.”
Mais tranquilo, o repórter pegou o táxi. Chegou ao prédio e deu de cara com Celione Apneico, advogado conceituado e membro de família conhecida. Ele era baixinho, atarracado, careca, vesgo, com o rosto marcado pela varíola e um corte que ia do olho à boca. Sem pestanejar, o intrépido Pietro Elias confundiu-o com o governador eleito. Celione, simpático e risonho, indicou: “Não, meu filho, eu não sou o governador. Ele está lá em cima”, apontando as escadas.
Pietro agradeceu e começou a subir, quando trombou com o homem mais feio que já tinha visto na vida: Sandoval Batráquio. Empresário local, Sandoval era miúdo de corpo, tinha um bucho fenomenal, cabeça enorme enterrada direto nos ombros, olhos esbugalhados, um nariz colossal e uma boca tão miúda quanto a da Emília.
Pietro Elias o cumprimentou efusivamente: “Boa tarde, governador.”
Sandoval replicou, igualmente sem pestanejar: “O governador está lá em cima.”
Nesse momento, o jovem jornalista fez meia-volta no corredor, despiu-se de todos os seus ideais e desistiu da entrevista. O país podia aguentar a ditadura por mais duas décadas, mas ele não aguentaria entrevistar alguém que, afinal, seria ainda mais feio do que os dois que acabara de encontrar. Certas realidades são duras demais, mesmo para quem sonha com a reportagem ideal.