A racionalidade em vertigem
Já escrevi um sem-número de vezes que, apesar de achar que Dilma cometeu crime de responsabilidade, não valia a pena politicamente fazer o impeachment da presidente, por uma série de razões sobre as quais não discorrerei aqui.
O nariz de cera acima é para dizer que assisti duas vezes à Democracia em Vertigem, de Petra Costa, e achei tecnicamente um bom documentário, ainda que discorde da narrativa da cineasta.
Desde o lançamento e mais ainda a partir da indicação para concorrer ao Oscar, poucas vezes vi militâncias pró e contra um filme tão aguerridas.
Ambas parecem não saber o que é um documentário e por que filmes concorrem ao Oscar.
Os filmes-documentários nasceram como ferramentas de investigação, mas essa concepção perdeu progressivamente espaço para outras narrativas mais criativas.
O termo documentary foi possivelmente cunhado pelo cineasta escocês John Grierson.
Para ele, o princípio do documentário estava no potencial do cinema para a observação da vida, que poderia ser explorado em uma nova forma de arte.
Grierson defendia que o ator “original” e a cena “original” seriam melhores para interpretar o mundo moderno do que os elementos oferecidos pela ficção. Em outras palavras, os conteúdos tirados do “material cru” seriam sempre mais reais do que os encenados.
O documentário oferece, junto com os fatos que apresenta, uma opinião específica, lidando com a realidade de forma mais intensa, debatendo-se com as surpresas e decepções do mundo real.
O que a realidade apresenta ao documentarista pode fazer parte do filme e enriquecê-lo, mas também causam problemas de logística e de planejamento.
Um documentário não é uma reportagem. É apenas e tão-somente uma narrativa sem maiores preocupações com a verdade, pois ainda que seja um gênero cinematográfico que tenha compromisso com a realidade, ele não representa a realidade tal como ela é.
Documentários mostram Getúlio Vargas como ditador sanguinário e também como estadista que se sacrificou pelo seu povo; Winston Churchill é um imperialista implacável e também o líder inconteste e primaz da resistência à máquina de guerra nazista.
N’O Triunfo da Vontade, documentário encomendado pelo Ministério da Propaganda alemão e dirigido por Leni Riefenstahl, é abordada a convenção do Partido Nazista em Nuremberg, no ano de 1934. Com excelentes técnicas de filmagens, o documentário ilustra como o partido queria ser visto: governando uma Alemanha sorridente que exaltava o líder supremo Adolf Hitler.
Assim como os filmes de ficção, um documentário é uma representação parcial e subjetiva da realidade. Nesse sentido, o trabalho de Petra Costa cumpre a função a que se propõe, a saber, a de contar a partir da ótica dos apeados do poder como se deu a deposição da presidente Dilma, atuando ao mesmo tempo como instrumento de mobilização social. É possível discordar da narrativa da cineasta brasileira e produzir um documentário apresentando narrativa oposta.
Democracia em Vertigem não foi indicado ao Oscar pela história que conta, mas pela maestria como foi produzido.