A infalibilidade do Leviatã de Toga

por Sérgio Trindade foi publicado em 25.nov.25

O vazamento das questões do ENEM de 2025, um desastre clássico, deveria figurar, com direito a moldura dourada, no Museu Nacional dos Micos Administrativos. Não foi apenas uma falha logística, mas uma epifania brasileira, um momento de revelação, um desses instantes em que o país se olha no espelho e se reconhece trágico, patético, irresistivelmente cômico. Falhamos, sim. Falhamos como quem cumpre destino, como quem segue à risca o manual antropológico da nossa própria desgraça. E isso se repete ano a ano, conforme diria o profeta da revolução das utopias regressistas, como tragédia e como farsa.

De novo, o Brasil atualizou seu software de corrupção, versão 13.7.2, patches incluídos, e demonstrou que roda com desempenho impecável sob qualquer sistema ideológico. Extrema-esquerda, esquerda, extrema-direita direita, centro, centrão, centríssimo, centrículo… tudo funciona, com disciplina e zelo alemães, certissimamente errado. O país tem a rara virtude de ser ecumênico na traquinagem e na patifaria. É tão democrático na prática ilícita que transforma a malandragem em idioma oficial. Como se dissesse ao mundo: “Aqui, meus amigos, a corrupção não é oposição ou situação, é antes de qualquer coisa instituição.”

Raymundo Faoro, um dos profetas da nossa desgraça estrutural, poderia aparecer agora em rede nacional, quem sabe num talk-show ao estilo Jô Soares, com intervalo para piadas sobre ministros e repetir, com a tranquilidade dos cínicos iluminados: “Eu avisei.” O seu Os donos do poder continua mais atual que qualquer atualização do iOS; o patrimonialismo resiste como um cupim teórico devorando as bases da República desde que Deodoro da Fonseca fingiu ser o republicano que não era ou que o monarca D. João descobriu que era possível governar e sonegar ao mesmo tempo. O Brasil continua fingindo que existe uma separação entre o público e o privado, mas, como sempre, tudo não passa de ficção jurídica. Ficção das ruins, ainda por cima.

Sérgio Buarque de Hollanda chamou de homem cordial aquilo que é um defeito de fabricação moral. O homem cordial é aquele primo distante daquele personagem rodrigueano que sorri enquanto apunhala, abraça enquanto subtrai, canta enquanto vaza provas do ENEM no grupo da família. É esse cordialismo nosso de cada dia – de raiz, de DNA, de herança colonial – que produz a corrupção não como acidente, mas como atributo nativo.

Eis aí a primeira verdade inconveniente do episódio: a corrupção brasileira não é obra de um partido, mas de uma espécie zoológica. Seja sob o banner da justiça social, seja sob o estandarte do liberalismo, existe sempre uma mãozinha, e não é a mão invisível do mercado, cutucando o sistema para favorecer os amigos do rei. Desde Tomé de Souza até o mais recente secretário-adjunto de qualquer coisa, a história é a mesma: o ralo ético sempre foi o lugar por onde escorreram e escorrem as oportunidades.

O vazamento do ENEM é apenas mais um capítulo dessa novela interminável. Não é acidente. Não é azar ou falha humana. É método. O Estado brasileiro foi construído de forma tão porosa que as informações vazam não por descuido, mas por direito consuetudinário. Vazam como verba de merenda, como licitação de prefeitura, como promessa de candidato em época de eleição, como emendas parlamentares, como construção de escolas, como bolsas de estudo etc.

Vivemos na era da inteligência artificial, mas o Brasil insiste em operar como se fosse um feudo analógico administrado por escrivães miúdos. Temos blockchain, criptografia, protocolos de segurança dignos de filmes americanos e, mesmo assim, conseguimos vazar PDF como quem perde o guarda-chuva no ônibus. O Ministério da Educação (MEC), coitado, não consegue guardar um arquivo digital sem que ele escape pelas fendas do sistema, como se documentos confidenciais tivessem vida própria e fugissem de medo ao primeiro sinal de planilha. E aqui, meus três ou quatro leitores, entra o elemento mais fascinante, quase sobrenatural, da história: existe, em meio ao pandemônio administrativo, um território sagrado, uma ilha de pureza, um oásis de infalibilidade divina; enquanto todo o resto do Estado brasileiro opera com o rigor técnico de uma pastelaria às três da manhã, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aparece como bunker nuclear metafísico, versão brasiliense do cofre do Tio Patinhas. Ali, nada falha. Nada vaza. Nada desafina. Segundo dizem – e quem ousaria duvidar? –, seus sistemas são indevassáveis. Indevassáveis com “I” maiúsculo. Indevassáveis com aura celestial. Indevassáveis sob pena de inquérito. O MEC perde PDF; o TSE guarda, segundo ele próprio, a democracia inteira numa urna de plástico e metal e ninguém questiona o milagre pós-moderno. Por isso, caríssimos, chegamos à conclusão inevitável e inescapável, sarcástica e deliciosamente absurda de que a solução é entregar tudo ao Robespierre brazuca.

Imagem feita com auxílio de IA

Se Robespierre degolava inimigos em nome da Virtude, nosso TSE, O Incorruptível da Asa Norte, cumpre, sem guilhotina, função semelhante: pairar acima da lama humana, administrar a pureza cívica e, sempre que necessário, puxar discretamente o tapete institucional de quem ousa desafiar sua santidade técnica. Sejamos, porém, coerentes: se só o TSE funciona, por que desperdiçar tamanha perfeição apenas nas eleições? Se as urnas são indevassáveis, por que não deixar que também administrem o ENEM, auditem o SUS, escolham a escalação da seleção brasileira, decidam onde deve ficar a nova capital, organizem churrascos públicos com fila biométrica, e, quem sabe, julguem as brigas familiares do Natal?

Num país onde a honestidade virou item de luxo, talvez devêssemos abraçar com entusiasmo o absolutismo tecno-burocrata. Um país governado por ministros togados faria, ao menos, o favor de falhar com elegância e latim. Em vez de vazamento de PDF, teríamos habeas corpus digitalis extraviado, o que soa infinitamente mais civilizado.

Ao fim e ao cabo, resta-nos rir. Rir para não rasgar o título de eleitor, rir para não jogar o celular na parede, rir para não acreditar no impossível, a saber, que um dia seremos um país normal, pois estamos no Brasil, uma “flor do Lácio” plantada num vaso quebrado. Um país que tropeça, cai, levanta e tropeça de novo com a coreografia perfeita da comédia involuntária. O Brasil, meus três ou quatro leitores, como já disse alguém “Se fosse para dar errado, dava certo. Mas como é para dar certo, dá errado.”

O vazamento do ENEM não é um ponto fora da curva; é a curva inteira fora de qualquer ponto. É a nossa assinatura. É o jeito brasileiro de construir desastres com vocação para pastelão. E se a única instituição que funciona com aparência de infalibilidade é o TSE, então que assuma logo a República. Que faça o papel de Robespierre tupiniquim, guilhotinando burocraticamente as nossas incompetências diárias. Afinal, se nem para guardar uma prova conseguimos confiar em qualquer outra instituição, talvez seja hora de entregar tudo à toga e, quem sabe, pedir um recibo indevassável.

 

Por Astério de Natuba (Sociólogo ultraconservador)

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