Deixem o terror para lá

por Sérgio Trindade foi publicado em 18.mar.23

Todos devem lembrar que o último 08 de janeiro de 2023 foi um dia icônico para o Brasil.

Não que tenha ocorrido algo que não estejamos acostumados, a violência de grupos políticos. A diferença é que dessa vez foram grupos denominados de militantes da extrema direita. Nesse fatídico dia aconteceu o primeiro ato de terrorismo doméstico no Brasil, do terceiro ano, da terceira década, do século XXI. Pelo menos foi assim que a ação de vândalos transloucados e revoltados com a posse do atual mandatário do executivo nacional foi tratada pela maior parte da mídia nacional, bem como por diversas autoridades políticas, intelectuais, jurídicas e muito mais.

Eu, apesar de ser uma nulidade em termos de compreensão do ordenamento legal e jurídico brasileiro, suponho possuir uma certa dose de bom senso e, mesmo que me encontre nadando, mal e porcamente, contra a corrente que domina o debate público, resisto enormemente em dizer que aqueles atos do dia 08/01 – condenáveis, repugnantes, ultrajantes, antidemocráticos, ou sei lá mais o que – sejam concebidos como terrorismo. Os responsáveis, em todos os níveis, devem ser punidos com o rigor da lei. Mas de forma alguma consigo imaginar que aquele tipo de ação tenha aterrorizado a sociedade. Causou revolta, sim. Causou asco, sim. Causou uma veemente oposição da opinião pública, sim. Não dá para conceber, porém, que aqueles manifestantes estivessem tentando aterrorizar o país. E para reforçar o que exponho, fui fuçar a internet e notei que a própria ONU dispõe de uma resolução de 1994, de número 49/60, na qual classifica o terrorismo como “atos criminosos planejados ou calculados para provocar estado de terror no público em geral, num grupo específico de pessoas ou em particulares por motivos políticos”.

Mas caros, todo este meu imbróglio inicial não significa que eu vá me dignar a discorrer sobre os atos infames do 08/01, ocorridos na capital brasileira. Tudo isso serviu apenas para uma abertura perspectiva para perceber a abordagem midiática e governamental sobre o também e, talvez, muito mais infame dia 14 de março de 2023, quando tiveram início as ações criminosas na linda Cidade do Sol, Natal, e em praticamente toda a terra dos potiguares.

Amanhecemos o dia 14 de março com a notícia de que uma determinada facção criminosa estava desferindo ataques contra diversos alvos, públicos principalmente, mas também privados, na maior parte do estado, atingindo também cidadãos comuns.

Contudo, também tenho que pontuar que não pretendo falar sobre as filigranas dos ataques, nem sobre os motivos da facção autora do mesmo, nem mesmo sobre a total falta de competência das lideranças estaduais e federais para mitigar o problema de segurança pública. Nem ouso fornecer soluções. Quem sou eu para ser tão audacioso assim? Minha única pretensão é tentar rapidamente abordar a forma como o debate público acerca dos ataques facciosos está sendo conduzido por autoridades políticas, jurídicas e midiáticas.

No todo, esta abordagem tem que ser realizada comparando, sopesando, fazendo equivalências com outras abordagens. Por isso, e unicamente por isso, resolvi recorrer ao ato de violência política mais impactante dos últimos tempos, que foi o 08/01, ou pelo menos a forma como vem sendo tratado. Notem que, apesar de escolas, instituições públicas, comércios, shopping centers e toda a sociedade civil ter sido atingida direta ou indiretamente pelos ataques criminosos iniciados dia 14, com perdas financeiras terríveis para pessoas físicas e jurídicas, por incomensuráveis traumas psicológicos e morais, não é possível perceber, salvo honrosas e raríssimas exceções, alguém dizer que estamos sofrendo um ataque terrorista. Lembrem-se do que falei logo acima sobre a resolução da ONU. Façam a seguinte pergunta: Por que em um ataque, o do 08/01, todos apressaram-se por condenar como um ataque terrorista e o do dia 14 e seguintes, apesar de estarmos aterrorizados, não existe quase ninguém fazendo este tipo de criminalização?

Minha resposta imediata é que não é esquecimento. Até mesmo porque temos notícias de uma autoridade policial dizendo claramente o seguinte: “Tecnicamente o que está ocorrendo não é terrorismo”. Também não é acidente de percurso, o qual ocasionaria as abordagens diferentes. O que temos são tão-somente intenções, muitas vezes claras, com o nítido interesse de causar um impacto profundo no público. O objetivo deste impacto é direcionar aquilo que as pessoas falam, evidentemente causado pelo que elas ouvem, vivenciam e leem, mas sobretudo impactando no que elas pensam, bem como em seus juízos sobre os fatos.

Isso é propaganda. Notório que é uma propaganda com um viés político-ideológico relativista. No final das contas temos a obrigação de fazer a mesma pergunta atribuída ao comediante Groucho Marx: “Afinal, você vai acreditar em mim ou nos seus próprios olhos?”

O cinismo da pergunta realizada só é possível porque existe um esvaziamento total do real significado das coisas. Apesar de vivermos no momento mais pujante da difusão da informação, existe uma preguiça absurda no que tange à busca por algo que era caro, por exemplo, a pensadores como Sócrates, Platão e Aristóteles – a busca pela verdade, que os levou obsessivamente a entender a importância de alcançar definições precisas. No cristianismo temos o mesmo exemplo de preocupação com verdade, em João 8:32: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. A verdade já não nos interessa, se não apenas as narrativas sobre o que se supõe que seja, ou do que se quer que seja. Estamos ladeados por narrativas que conduzem nosso juízo e percepção de mundo. É mais doce ao paladar digerir aquilo que já está pronto e embalado.

Levando em consideração que terminamos sempre discutindo o assunto da vez, posto que somos, na maior parte dos casos, apenas consumidores de informação, passa longe de nossa percepção o esvaziamento do significado do que é dito, assim como da forma que é dito. O vocabulário torna-se pobre e vazio. Vejam que este empobrecimento vocabular, do pensamento e da percepção, já foi denunciado por Victor Klemperer, em LTI: a linguagem do Terceiro Reich, no qual enuncia que a linguagem cotidiana do povo alemão durante o período de domínio do nazismo foi empobrecida paulatinamente por meio também do domínio daquilo que se debatia publicamente e, mais importante, de como os assuntos eram apresentados a abordados publicamente.

Plínio Corrêa de Oliveira, no Brasil, em 1966, em sua obra Corrupção da Linguagem e a Propaganda Comunista, faz apontamentos na mesma linha que Klemperer, salvaguardando apenas que ele aponta os interesses ideológicos nisso. Portanto, percebam que o problema não é novo. Na ficção o autor George Orwell aponta o fenômeno da novilíngua, criada por um governo hiperautoritário, na obra 1984, em que o objetivo do novo idioma era remover ou condensar certas palavras, ou o sentido delas, com a intenção de restringir o pensamento. Portanto, queridíssimos amigos, não pensem que nossas mazelas sociais e econômicas são apenas fruto do acaso, da inveja, de um político malvadão, ou de um empresário capitalista igualmente malvado. Todas as nossas mazelas devem-se prioritariamente a um certo esvaziamento moral. E este aqui ocorre porque estamos espiritualmente e intelectualmente vazios.

A solução só é possível por meio de muita dor, muito esforço, para que nos eduquemos. Fora disso temos o caos, gerado pelo medo, sem que possamos perceber, conforme lembrou o jornalista Renato Cunha Lima em vídeo postado em suas redes sociais, ao lembrar de uma fala do anti-herói Coringa, na obra cinematográfica homônima, que o medo de enfrentar a realidade gera o caos cognitivo no qual vivemos. O problema é: a realidade continuará com todo seu peso sobre nós, tal qual uma bigorna em queda livre, quer queiramos ou não, quer gostemos ou não.

Assim, pelo menos devemos ter a obrigação de começar a ensaiar uma olhadela para a realidade que teima em nos afrontar. Jamais deixemos que políticos, jornalistas, juristas digam para nós o que as coisas são. Elas são o que são, isso é tudo que são.

Terrorismo é terrorismo!

Façam suas escolhas.

 

 

Por Luiz Roberto

(Professor de Filosofia)

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