Lula e Bolsonaro na prisão: coragem, disciplina e covardia em duas quedas políticas

por Sérgio Trindade foi publicado em 28.dez.25

Comecei a rascunhar o texto hoje cedo, horas depois da prisão do ex-diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal Silvinei Vasques, no aeroporto de Assunção, capital do Paraguai. Mais uma fuga de um ex-auxiliar de Jair Bolsonaro me relembrou conversas que tive com amigos e colegas sobre a postura de Lula e aliados e de Bolsonaro e aliados, quando pegos com a boca na botija e correram os processos contra os. grupos

Há prisões que encerram uma carreira. Outras inauguram um capítulo. No Brasil recente, duas sequências de encarceramentos – a de Lula e dirigentes petistas na esteira da Lava Jato e a de Bolsonaro e seus auxiliares após o 8 de janeiro – revelam não apenas decisões judiciais, mas diferenças profundas de temperamento político, disciplina partidária e relação com o poder. Não se trata aqui de absolver ou condenar personagens. Isso é tarefa dos tribunais e da história (no Brasil de hoje, com juízes, por “n” motivos, na berlinda, mais da segunda que da primeira). Trata-se de observar como cada campo político reagiu quando o poder virou cela, quando o palanque virou cubículo e quando o discurso teve de sobreviver sem microfone.

Imagem feita com auxílio de IA

Em abril de 2018, quando o juiz Sérgio Moro decretou sua prisão no caso do tríplex do Guarujá, Lula não fugiu, não se escondeu, não negociou saída discreta. Fez o oposto: atrasou a entrega, concentrou apoiadores, falou ao país do alto do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e transformou o cumprimento da ordem judicial em ato político deliberado. Dormiu cercado por militantes, discursou longamente, reafirmou sua inocência e só saiu quando quis sair, escoltado, a pé, em meio à multidão. Não houve choro, não houve descontrole. Houve cálculo, narrativa e resistência simbólica. Disse Lula, num tom que misturava desafio e martírio: “Se querem prender minhas ideias, terão trabalho”. A imagem que ficou não foi a de um réu acuado, mas a de um líder que decidiu enfrentar a prisão como quem enfrenta um comício hostil. Na cela de Curitiba, Lula passou a conceder entrevistas por escrito, (dizem que) leu obsessivamente, manteve rotina rígida e construiu, com ajuda do partido, a imagem do preso político injustiçado.

A Lava Jato produziu um fenômeno curioso no PT: quanto mais líderes eram presos, mais o partido se fechava em disciplina interna. José Dirceu, condenado a penas que, somadas, ultrapassaram três décadas, jamais apareceu em público pedindo clemência, alegando fragilidade emocional ou dramatizando a própria condição. Enfrentou a prisão como um quadro orgânico de partido, não como um indivíduo em busca de salvação pessoal. Gravou mensagens políticas, escreveu textos, incentivou a militância. Para o PT, a prisão virou trincheira. Outros petistas presos (João Vaccari Neto, Delúbio Soares, Renato Duque) seguiram padrão semelhante: silêncio estratégico, discurso coletivo, nenhuma cena pública de colapso emocional. Mesmo quando delações premiadas surgiram, o partido sustentou a narrativa de perseguição judicial, postura que não nasceu da virtude moral, mas da experiência histórica. O PT sempre soube que, em política, quem chora perde o enquadramento da história.

É preciso dizer: serenidade não é sinônimo de inocência. A posterior anulação das condenações de Lula pelo STF, por alegada incompetência da Vara de Curitiba e suspeição do juiz, reabriu o debate jurídico, mas não apagou os fatos políticos da época, afinal o que se analisa aqui não é o mérito penal, mas o comportamento público. Lula não implorou, não dramatizou, não buscou atenuantes pessoais. Tratou a prisão como uma injustiça histórica a ser vencida no tempo longo, não como uma tragédia pessoal imediata. Foi uma postura quase gramsciana: perder a batalha jurídica para ganhar a guerra simbólica.

A queda de Jair Bolsonaro seguiu caminho oposto. Após perder a eleição de 2022, ele não reconheceu explicitamente a derrota, saiu do país, manteve silêncio ambíguo e deixou seus seguidores orbitando teorias conspiratórias. O resultado explodiu em 8 de janeiro de 2023.

Quando as investigações avançaram e os processos começaram a cercá-lo, Bolsonaro já não era o capitão destemido do cercadinho. Era um ex-presidente acuado, sem partido sólido, sem disciplina interna e cercado por auxiliares desorientados. Sua prisão, determinada após condenação por tentativa de golpe e organização criminosa, não foi acompanhada de gesto simbólico forte. Não houve discurso histórico, não houve despedida pública, não houve narrativa épica. Houve justificativas médicas, alegações de paranoia, episódios constrangedores envolvendo tornozeleira eletrônica. A imagem pública foi devastadora: um líder que prometia “não fugir” acabou recorrendo a explicações que soaram frágeis.

Se no campo petista a prisão gerou coesão, no bolsonarismo produziu debandada. Auxiliares diretos de Bolsonaro choraram em depoimentos, alegaram confusão mental, tentaram deixar o país, pediram delações, atribuíram decisões “ao calor do momento”. Ex-chefes de órgãos de segurança alegaram obediência cega. Assessores falaram em “mal-entendidos”. Ninguém quis ser o estrategista do golpe. Todos preferiram o papel de figurantes involuntários.

O contraste com o comportamento petista é gritante. Onde o PT fechou fileiras, o bolsonarismo esfarelou-se.

Bolsonaro construiu sua imagem pública sobre a ideia de força. Era o capitão que não recuavava, o homem que enfrenta o sistema, o líder que desprezava regras. Quando chegou a hora de enfrentar o sistema como réu, essa imagem não resistiu. Ao alegar efeitos colaterais de remédios, paranoia, confusão mental, Bolsonaro humanizou-se da pior maneira possível, não como líder trágico, mas como personagem errático, um homem que passou a explicar o inexplicável e a justificar o injustificável. Lula, em contraste, desumanizou-se estrategicamente, virando símbolo, não indivíduo; causa, não pessoa; projeto, não biografia. O PT, com todos os seus vícios, mostrou que em algo que o bolsonarismo nunca teve: estrutura, militância, discurso, linha de comando. Isso faz diferença.

Bolsonaro apostou tudo na lealdade pessoal e no carisma. Quando o carisma falhou e a lealdade evaporou, sobrou isolamento, com um exército de desertores tentando salvar a própria biografia antes que o processo chegasse à última página.

A história brasileira recente ensina uma lição cruel: na política, a forma de cair importa tanto quanto a queda. Lula caiu como líder que se preparou para cair, que conhecia a liturgia do martírio e sabia que, às vezes, perder é apenas uma forma mais lenta de vencer. Bolsonaro caiu como alguém que acreditou que nunca cairia, convencido de que bravatas substituem estratégia e que gritos intimidam o Estado. Os petistas presos enfrentaram a cela como extensão do palanque. Os bolsonaristas enfrentaram o palanque como extensão do tribunal – e perderam ambos, o discurso e o processo.

No fim, a cela é democrática: recebe fortes e fracos. Mas não nivela caráter político. Alguns entram tentando salvar a própria pele. Outros entram tentando salvar uma narrativa, porque sabem que, na política, a memória pesa mais que a sentença. Lula saiu da prisão candidato a presidente. Bolsonaro saiu do poder réu, cercado de advogados e abandonado por muitos dos que juravam lealdade eterna no cercadinho.

A diferença, meus três ou quatro leitores, não está na sentença e, sim, no modo de atravessar o corredor até a cela: uns caminham como quem escreve história; outros, como quem já procuram um álibi.

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