O martírio da evidência
O texto a seguir não é exatamente meu. Está escorado em artigo escrito, na Folha de São Paulo, por Lygia Maria, com o título Transfobia imaginária criminaliza opinião.
O Brasil é um país que se apaixona, ao mesmo tempo, pelo trágico e pelo cômico. Só aqui alguém pode ser acusado de transfobia porque ousou dizer, num post de rede social, que um homem é… um homem. Sim, foi o que aconteceu em 2020, quando a designer Isabella Cepa cometeu o crime hediondo de escrever no Facebook que Erika Hilton, então vereadora mais votada de São Paulo, era um homem. Hilton, que é trans, não deixou barato e acionou a Justiça, a qual, como convém ao drama brasileiro, entrou em cena com toga, martelo e cara de quem segura as Tábuas da Lei. O caso foi parar no STF, esse teatro barroco onde onze pessoas se revezam entre Moisés, Zeus e, vez ou outra, maestro de orquestra. No fim, decidiram que Cepa não cometeu crime algum, porque não houve repressão, nem opressão, nem o confisco dos direitos da humanidade. Uma vitória daquilo que hoje chamamos de bom senso, mas que amanhã, com a mesma pressa, pode ser apontado como manifestação do fascismo tupiniquim.

Texto feito com auxílio de IA
A ciência, essa pobre dama apresentada em circos, sempre foi a prima pobre nessa festa de identidades. Desde Lucy, a etíope que viveu há 3,2 milhões de anos, sabe-se que existem dois sexos: macho e fêmea. Lucy não tinha Twitter, Instagram ou TikTok, nem assessoria de imprensa, mas tinha quadris largos para parir. Isso era dado biológico, não construção social. O homo sapiens seguiu nesse arranjo – homem e mulher – até que alguém resolveu que a biologia era uma espécie de tirania genital. Hoje, afirmar o óbvio – que existe homem e existe mulher – é considerado subversivo, quase tão perigoso quanto ler O Capital em plena guerra fria na Avenida Paulista ou na Avenida Atlântica. Estamos num tempo em que a frase “homem é homem, mulher é mulher” corre o risco de virar discurso de ódio, enquanto a tese de que “gênero é fluido como refrigerante sem gás” recebe aplausos em congressos acadêmicos. A ciemssa de circo ganhou terreno.
Voltemos ao processo. A decisão da 7ª Vara Criminal de São Paulo foi clara: a fala de Cepa não pretendia eliminar minorias, apenas constatar algo que a biologia confirma em qualquer manual escolar do ensino básico. Mas Hilton levou o caso até o STF, onde tudo ganha ares de epopeia, o palco onde cada voto se transforma num ato de tragédia grega, com ministros citando Goethe, Machado de Assis e, se a coisa ficar muito apertada, até Gilberto Gil. E pensar que em 1824, quando o Brasil teve sua primeira Constituição, não havia essas preocupações delicadíssimas. O artigo sobre “opiniões” tratava de liberdade de imprensa, mas ninguém imaginava que dois séculos depois alguém seria processado por postar no Instagram que fulano é homem ou mulher. O Império caiu, a República chegou, tivemos ditadura, redemocratização, mensalão, petrolão…, mas nada é tão revolucionário (ou reacionário) quanto chamar alguém de “homem” nas redes sociais
E não é só aqui. Em 2023, a maior conferência mundial de antropologia, nos Estados Unidos, cancelou um painel sobre sexo biológico. O motivo? Afirmar que homem e mulher existem poderia causar “danos” a pessoas trans e LGBTQI+. Ora, se a Antropologia desistiu de estudar o sexo como categoria, o próximo passo é a História declarar que as pirâmides do Egito foram erguidas por estagiários de marketing. O episódio lembra o julgamento de Galileu no século XVII, quando o cientista italiano foi obrigado a negar que a Terra gira em torno do Sol. Hoje, a nova Inquisição não usa batina nem vela de sebo: veste camiseta com arco-íris e aciona o botão “Denunciar” no Twitter, no Instagram no raio que o parta. É o mesmo espírito censor.
No processo movido contra Cepa, ainda arrastaram um detalhe tragicômico: uma postagem que criticava um estudo afirmando que identificar o sexo feminino em cadáveres seria transfobia – e que isso, pasmem, estaria ligado ao feminicídio. Só no Brasil mesmo se consegue ligar necrotério a militância identitária. No Egito antigo, os sacerdotes se preocupavam em embalsamar faraós para a eternidade; aqui, queremos que até os mortos se declarem gênero fluido antes de irem para o cemitério. Essa lógica é tão ridícula que faria rir até os monges copistas da Idade Média, aqueles mesmos que passavam 12 horas por dia iluminando manuscritos sem jamais imaginar que, séculos depois, alguém seria chamado de criminoso por descrever o sexo de um cadáver.
Discordâncias sobre identidade de gênero, políticas públicas e biologia não podem ser transformadas em crime. Caso contrário, vamos ter que abrir uma penitenciária só para abrigar cientistas, médicos e professores que ousarem repetir o que está escrito em livros de anatomia. E aqui mora o perigo: quando se começa a criminalizar opiniões, o próximo passo é punir risadas. O Brasil, afinal, adora confundir piada com ofensa. Foi assim com Stanislaw Ponte Preta na década de 1960, foi assim com o Casseta & Planeta nos anos 1990, e será assim até o fim dos tempos. A cada geração, renova-se o desejo de vigiar o humor. Talvez um dia cheguemos ao ponto de processar quem contar, no Natal, a clássica do “Pavê ou Pacomê”.
O filósofo americano Ralph Waldo Emerson, um sujeito que sabia rir da própria desgraça, dizia: “Que eu nunca caia no erro vulgar de imaginar que estou sendo perseguido sempre que sou contrariado”. Pois bem, se o Brasil tivesse ouvido Emerson, metade das brigas de condomínio já teria sido evitada, e o STF estaria com a pauta mais leve. Mas não, preferimos transformar contrariedade em perseguição e opinião em crime.
A vitória de Isabella Cepa no Supremo Tribunal Federal é, ainda que pequena, um sopro de realidade numa atmosfera cada vez mais rarefeita. Não se trata de negar a identidade de ninguém, mas de defender o direito ao dissenso. Porque se amanhã dissermos que o céu é azul e alguém se ofender, não será surpresa ver a cor do céu virar assunto de inquérito policial. Em tempos em que a indignação virou moeda corrente e a ofensa virou profissão, precisamos lembrar que a história não perdoa exageros. Galileu, coitado, teve que se retratar diante da Inquisição, mas a Terra continuou fazendo seu trajeto em volta do Sol. E talvez, daqui a alguns séculos, olhem para nós e riam: “Vocês realmente processavam pessoas por dizer que homem é homem e mulher é mulher?”. Será a piada mais longa da história, escrita não por comediantes, mas por tribunais. E, convenhamos, não há nada mais brasileiro do que transformar a tragédia em anedota.