O necrotério da política
Há uma coisa pior do que matar o inimigo: é festejar a morte dele. E no Brasil, meus três ou quatro leitores, descobrimos esse filão de necrofilia política. Esquerda e direita – dois blocos que juram representar a civilização – regozijam-se com cada cadáver do adversário/inimigo que o acaso lhes entrega, de preferência em praça pública.
Vejamos o caso recente: Charlie Kirk, conservador americano, assassinado no campus de uma universidade dos Estados Unidos. No Brasil, um historiador e jornalista famoso, Eduardo Bueno (Peninha), não se conteve e abriu champanhe verbal e gargalhou como se estivesse diante da queda do 3º Reich. Cheguei a escrever sobre isso (https://historianosdetalhes.com.br/politica/amor-a-facas-e-balas/). Parte da esquerda aplaudiu discretamente, como quem esconde a garrafa de cachaça debaixo da cama. A direita, indignada, gritou “desumanidade!”, “canalhice!”, “cretinice!”. Mas é claro que, cinco minutinhos depois, essa mesma direita lembrou-se de quando festejou o câncer de Dilma, o câncer de Lula, o tiro que atravessou o corpo de Marielle Franco. É o necrotério em festa, cada ala bebendo sobre o caixão alheio.
Não há santo nesse circo funestamente mambembe. Quando Marielle foi assassinada, a esquerda ergueu um altar; a direita ergueu uma pista de dança. Foi um baile macabro, com risos no lugar de flores. O corpo ainda quente, e já havia deputado estadual no Twitter (atual X) com insinuações, chacotas, maledicências. A morte virou piada, e o sangue – combustível de curtidas.
E que dizer da facada em Jair Bolsonaro? Ah, meus três ou quatro leitores, ali o Brasil mostrou o quanto pode ser vil. De um lado, gente com o riso escondido, satisfeita como quem ganhou na loteria sem comprar bilhete. “Foi armação!”, diziam os vampiros de sempre com os olhos brilhando de satisfação, porque, se fosse verdade, tanto melhor: o inimigo apunhalado pela própria mentira. De outro lado, bolsonaristas transformaram o ferimento numa aparição de Fátima. O intestino exposto virou relíquia, digno de procissão. Era a faca de Adélio contra o corpo de Cristo. A política brasileira conseguiu a proeza de converter tentativa de homicídio em marketing eleitoral.
Há quem imagine que a civilização brasileira foi destruída em 2018, ou em 2016, ou em 1964, ou em 1937. Bobagem. E quase sempre dita de forma piegas e/ou messiânica. A civilização brasileira parece nunca ter existido. Se houvesse, não riríamos do câncer alheio, não festejaríamos a morte de uma vereadora, não faríamos piada de uma facada num candidato a Presidente da República, não aplaudiríamos um assassinado no Texas. O que existe aqui é a tradição do pelourinho: o inimigo político é sempre um escravo condenado, exposto à execração pública. Paulo Francis, daquele seu jeito peculiarmente ferino, dizia que “o Brasil talvez já tenha se acabado e a gente não tenha se dado conta disso”.
Reparem: quando Dilma Rousseff foi diagnosticada com câncer, a internet virou uma UTI de sarcasmo. Houve quem desejasse metástase. Quando Lula revelou também ter câncer, odiadores (detesto o termo, mas utilizo-o para me mostrar que nem sempre faço aquilo que quero) festejaram como quem ganha uma Copa do Mundo. De repente, o tumor virou programa de governo, promessa de salvação nacional. O que era célula degenerada tornou-se providência divina. Para muitos, o verdadeiro SUS era a enfermidade do adversário.
Aí está o segredo: não odiamos apenas as ideias do outro, odiamos a sua existência. Queremos o fígado do inimigo. Não basta derrotar o petista, tem que matar o petista. Não basta ridicularizar o bolsonarista, tem que vê-lo apodrecendo em urna funerária.
E a hipocrisia? Essa é a única coisa democrática no Brasil: todos a praticam. É o único princípio vigente. Quando Eduardo Bueno riu da morte de Kirk, a esquerda o perdoou em silêncio. Se fosse um direitista rindo da morte de, digamos, Jean Wyllys, o mesmo grupo armaria barricadas de indignação. E a direita, que hoje pede compaixão, foi a mesma que, sem um fiapo de pudor, achou graça no assassinato de Marielle, como quem escuta uma anedota de botequim. É a dialética da canalhice: ora sorrio, ora choro, dependendo de quem morreu. Tese e antítese gerando síntese putrefata.
Até mesmo a doença virou palco. Lula, Dilma, Bolsonaro…, qualquer sinal de enfermidade é tratado como se fosse ato político. Não se comenta o tumor, mas sim o lado do tumor. Se é no fígado do aliado, é tragédia. Se é no fígado do inimigo, é carnaval. A medicina não cura o Brasil; a medicina divide o Brasil.
Não esqueçamos de Tancredo Neves. Em 1985, o Brasil inteiro rezava pela saúde do Presidente eleito. Hoje, se acontecesse o mesmo, metade da população estaria rezando pela recuperação, a outra metade pedindo falência múltipla dos órgãos. Tancredo não sobreviveria nem às redes sociais.
Essa desumanidade tem pedigree. No Rio Grande do Sul, no início das década de 1890, a degola era celebrada como se fosse gol de final de campeonato; poucos anos depois, a festa foi transferida para sertão da Bahia, quando o Exército brasileiro escreveu uma das mais feias páginas de sua história, expondo os cadáveres de jagunços como troféus. A tradição continuou: Vargas se matou e foi saudado por uns como herói, por outros como alívio nacional. Getúlio não saiu do Catete; Getúlio saiu do necrotério direto para a história, acompanhado de aplausos e vaias.
O que espanta é a alegria. É o sorriso escancarado diante do túmulo. A política transformou-se em torcida organizada, e a morte, em gol de placa. Se Lula morre, metade do Brasil solta rojão. Se Bolsonaro morre, a outra metade abre champanhe. É a democracia dos abutres.
Não se enganem: não há ideologia no escárnio. Não há comunismo, não há fascismo, não há conservadorismo, não há progressismo. O que existe é a pulsão de morte disfarçada de convicção política. O brasileiro não milita, urra. O brasileiro não discute ideias, deseja necroses. E quando não é morte, é doença. A cada internação hospitalar de um líder político, multiplicam-se as correntes de WhatsApp desejando que o soro seja veneno. Bolsonaro pegou Covid, os petistas festejaram; Lula pegou Covid, os bolsonaristas também festejaram. O vírus, para nós, não é problema de saúde. É propaganda eleitoral.
Pergunto: quem será o próximo? Quem será o cadáver mais útil para as urnas? Porque, afinal, a morte é o único consenso nacional. Esquerda e direita só se encontram no velório do adversário. Por isso, digo: o Brasil perdeu a vergonha. Perdeu até a liturgia do respeito à morte. Hoje não há luto, há meme. Não há missa de sétimo dia, há hashtag. Não há condolência, há ironia. O morto não é morto; o morto é “bem-feito”. Nem no necrotério o brasileiro é cordial. Exceto se o cadáver for aliado, porque diante do cadáver do adversário dançamos. O que sobra, no fim, é essa incivilidade atávica. Não vivemos numa democracia: vivemos num ringue de vale-tudo, no qual até a doença do outro é instrumento de vingança. Não temos adversários, temos inimigos. E inimigo bom é inimigo morto.
Ninguém percebe, mas nesse jogo todos perdem. Porque, ao rir da morte alheia, assinamos a própria sentença. O destino é inexorável: cedo ou tarde, todos seremos cadáver de alguém. E então seremos o motivo de festa dos nossos inimigos. É a única justiça da política brasileira: o rodízio do necrotério.