O Partido que nunca deu golpe, mas sempre tentou mudar o jogo durante o jogo
Dia desses, ouvi colegas conversando, em tom quase edificante, sobre o quanto o PT seria um partido democrático. A conversa tinha aquela solenidade típica de quem confunde convicção com argumento. O ponto alto do raciocínio era simples, redondo e vazio: “Ora, o PT nunca tentou dar um golpe de Estado”. Silêncio respeitoso. Missa encerrada.
É verdade. O PT nunca tentou dar um golpe de Estado. Nunca fechou Congresso, não suspendeu eleições, não decretou estado de sítio, não convocou tanques. O problema começa quando se reduz democracia à ausência de quarteladas. Democracias raramente morrem de infarto; costumam morrer de anemia institucional, de corrosão lenta, de uso abusivo das regras até que elas percam sentido.
O PT, desde a origem, jamais foi um partido golpista. Foi – e é – algo mais sofisticado: um partido desconfiado da democracia liberal, que sempre tratou as instituições como obstáculos provisórios a um projeto considerado moralmente superior. Não se trata de derrubar o jogo, mas de melá-lo, de esticar suas bordas, de reinterpretar suas regras até que a competição vire encenação. E para isso, o italiano Antonio Gramsci foi transformado em santo padroeiro da militância de gabinete, oferecendo a chave conceitual.
O PT nunca apostou na tomada violenta do poder, mas na construção da hegemonia. O problema, como alertaria Raymundo Faoro, é que no Brasil hegemonia costuma degenerar em confusão patrimonialista, pois o partido certamente se verá como intérprete exclusivo do povo e passa a tratar o Estado como extensão de sua biografia.
O primeiro grande momento dessa vocação antipedagógica ocorreu em 1985. O país saía de uma ditadura longa, cansada, malcheirosa. Tancredo Neves simbolizava a transição possível, não ideal, mas a viável. O PT decidiu não votar em Tancredo. Preferiu a altivez da pureza à responsabilidade da história. José Murilo de Carvalho já explicou: a redemocratização brasileira não foi um ato heroico, mas um pacto frágil. O PT, naquele instante, recusou o pacto e se colocou à margem do processo que depois diria defender com fervor quase religioso. Não foi, sejamos claros, gesto revolucionário. Foi gesto adolescente. Max Weber ensinava que a política exige conviver com o trágico, equilibrando convicção e responsabilidade. O PT optou pela convicção performática, mesmo que isso significasse prolongar a incerteza institucional. Não houve golpe. Houve indiferença histórica.
Veio 1994, e com ele o Plano Real. Um país exausto, humilhado pela inflação, descobriu o valor da previsibilidade. O PT foi contra. Combateu o plano, denunciou-o como farsa eleitoral, apostou no caos. Não compreendeu, ou fingiu não compreender, que estabilidade monetária é política social de primeira ordem. Décadas depois, alguns dirigentes admitem o erro, sempre em tom confidencial, como quem pede desculpa sem testemunhas. À época, porém, o partido preferiu se alinhar contra a realidade, contrariando um ensinamento pesado do historiador Boris Fausto, para quem os partidos democráticos devem saber reconhecer conquistas civilizatórias, mesmo quando não são suas. O PT recusou-se. Mais uma vez, não foi golpe. Foi cegueira ideológica travestida de virtude, lógica que se aprofundou na prática recorrente de pedir impeachment de todo presidente ao qual o PT fazia oposição.
Collor, Itamar, Fernando Henrique foram alvo. O impeachment virou slogan, método de agitação, palavra mágica para deslegitimar adversários. Não importava a gravidade objetiva do fato, mas o efeito político. Quando o instituto foi usado contra Dilma Rousseff, o partido gritou “golpe”, como se tivesse descoberto a pólvora da indignação institucional naquele instante. Ora, quando conceitos extremos são banalizados, o espaço público se degrada, advertia a filósofa política Hannah Arendt. O PT banalizou o impeachment antes de sacralizá-lo depois. A conta chegou, como sempre chega, sem pedir licença.

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Mas o DNA autoritário do partido não se revela apenas nesses episódios. Ele se manifesta, sobretudo, numa concepção de democracia como instrumento, não como valor. O PT sempre preferiu falar diretamente “em nome do povo”, reduzindo a cidadania a uma relação vertical, mediada pelo líder carismático e pelo Estado benfeitor. Programas sociais legítimos foram convertidos em narrativa de pertencimento moral: quem critica, é apontado como ingrato; quem discorda, elitista; quem questiona, inimigo do povo.
O Estado, aparelhado, virou trincheira. Conselhos, sindicatos, universidades, estatais, tudo, absolutamente tudo, orbitando uma mesma gramática de fidelidade. O cientista político Robert Michels já havia descrito, há mais de um século, esse destino: partidos que nascem democráticos tendem a se transformar em oligarquias autocentradas. O PT não desmentiu a lei de ferro; confirmou-a com entusiasmo pedagógico.
Nada disso é golpe, sejamos justos, meus três ou quatro leitores. É algo mais sorrateiro. É a erosão cotidiana das mediações institucionais, substituídas por uma moral de facção. A democracia deixa de ser um sistema de regras impessoais e vira um enredo. Há os bons e os maus, os do lado certo da história e os suspeitos permanentes – uma manifestação escrachada de personalismo moderno.
O PT nunca fechou o Congresso, mas tentou desmoralizá-lo. Nunca calou a imprensa, mas trabalhou para desacreditá-la. Nunca aboliu eleições, mas questionou seus resultados sempre que lhe foram adversos. Nunca deu golpe, mas tratou a democracia como algo a ser superado em nome de uma causa supostamente mais elevada. A ironia final é que, ao agir assim, o partido ajudou a criar o ambiente de desconfiança institucional que mais tarde seria explorado por forças muito menos civilizadas. A democracia, enfraquecida por dentro, tornou-se presa fácil por fora. A história não costuma distinguir entre intenções nobres e efeitos perversos.
O PT nunca tentou dar um golpe de Estado. É verdade. Mas passou décadas ensinando que regras só valem quando favorecem o projeto. E isso, numa democracia frágil como a brasileira, não é pouco. É quase tudo. E a história, uma senhora que não se impressiona com slogans e nem com camisetas vermelhas, costuma ser paciente, nunca, porém, distraída. Quando decide julgar, não pergunta quem tinha boas intenções. Pergunta quem soube distinguir poder de hegemonia, liderança de tutela, democracia de catecismo.
E aí, infelizmente, o PT costuma reprovar sem direito a segunda chamada.