O(s) santo(s) do Caixa 2 e o milagre da multiplicação dos reais

por Sérgio Trindade foi publicado em 13.nov.25

Estamos, meus três ou quatro leitores, vivendo mais um escândalo na nossa democracia, como bem disse José Dirceu numa dessas falas inflamadas de quem se acha à margem, embora esteja dentro da fila. Segundo ele, são R$ 52 bilhões destinados a deputados, com alguns deles recebendo até R$ 600 milhões em apenas quatro anos. Se fosse novela teria nome sugestivo – Amor de Bilhões, mas aqui é política, o gênero mais barato da dramaturgia nacional.

Pois bem, é nesse cenário que o Partido dos Trabalhadores (PT), de esquerda, ocupa papel de estrela (junto a outros do mesmo espectro e do outro espectro político) na composição de um espetáculo nefando e nefasto ao qual chamamos de financiamento eleitoral. E José Dirceu, ex-deputado e ex-ministro, por sua vez, figura no centro do palco, coçando o bigode (não necessariamente literal, mas moral) e distribuindo sorrisos de quem sabe que a plateia está hipnotizada.

Imaginem a cena: um partido que emergiu da resistência à ditadura, dos sindicatos, das ruas, cheio de alto tom moralista, de bandeiras vermelhas, de promessas de mudança, e então, ao chegar ao poder ou próximo dele, começa a desenhar o mapa de como se faz pra vencer, e, de repente, o mapa incluiu cruzamentos escuros e escusos. Um financiamento eleitoral que, em teoria, serviria para equilibrar disputas (um voto, um eleitor) se tornou um instrumento de poder bruto, um arranjo no qual quem tem mais dinheiro tem mais poder.

No Brasil, o sistema de financiamento político repousava sobre três pilares básicos (ou três mentiras consentidas): doações de empresas a partidos e candidatos, o que gera dependência; uso de recursos públicos para campanhas, ou para partidos aliados, via repasses, emendas, fundos; e caixa dois, porque, como ensina a sabedoria popular, “dinheiro não quer volume, quer movimento”. E se o movimento não está declarado, fica mais solto, mais livre.

Agora, o PT, ao chegar ao centro da política nacional [especialmente com o(s) governo(s) Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff], começou a fazer da aritmética eleitoral sua arte: alianças, apoios, negociações partidárias e, nos bastidores, fluxos de dinheiro que escapavam aos olhos críticos. É aí que entra o financiamento público ou público misturado com privado, os quais ganham contornos de poder que corrompe. Se R$ 52 bilhões circulam, não estão circulando por capricho, mas para garantir votos, base aliada, silêncio e manutenção do status quo.

José Dirceu não é personagem secundário nessa história; é personagem que se aproxima do herói trágico, se tivesse honestidade. Ele foi presidente do PT, coordenador da campanha presidencial de Lula, ministro-chefe da Casa Civil. Mas também passou a ser visto como “o homem que cabia assustadoramente bem no cargo de articulador do sistema” (https://www.camara.leg.br/noticias/74274-relatorio-do-processo-contra-o-deputado-jose-dirceu/?utm_source=chatgpt.com). Quando o escândalo chamado Mensalão estourou, em 2005, já não era mais apenas financiamento eleitoral, mas compra de apoio parlamentar; era uso de recursos ilegais para garantir que deputados votassem como convém ao governo (https://oglobo.globo.com/politica/esquema-ilegal-financiou-apoio-parlamentar-ao-governo-lula-10775775?utm_source=chatgpt.com). Roberto Jefferson, então deputado federal, apontou Dirceu como o organizador do esquema.  Dirceu, por sua vez, negou o chamado Mensalão. Segundo ele, aquilo não passava de caixa dois ou falhas de controle, mas não de esquema estruturado (https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/jose-dirceu-distribui-texto-negando-existencia-do-mensalao-2w5duqwchxqmd02013zhdgs3y/?utm_source=chatgpt.com). Não era, digamos, Mensalão, era mensalinho.

A verdade pura e simples, meus três ou quatro leitores, é que o PT, sob a batuta de Dirceu, passou de paladino da ética a marqueteiro da máquina de poder. O partido que prometia distribuir poder, caiu no velho truque de usar dinheiro para comprar alianças políticas, e quando o partido controla o Estado, o dinheiro vira poder estatal disfarçado de campanha. No relatório da Câmara, consta que Dirceu, como coordenador da transição e ministro, tinha poderes para articular a base aliada, que o PT “construiu a hegemonia” por meio do uso do Estado e dos recursos públicos (https://www.camara.leg.br/noticias/74274-relatorio-do-processo-contra-o-deputado-jose-dirceu/?utm_source=chatgpt.com).

Imaginem o cenário como se fosse um grande circo, com luzes, palhaços, trapezistas e com ingressos que custam milhões; ingresso pago por você, contribuinte. O financiamento de campanhas é isso, uma máquina de poder altamente profissionalizada. O candidato que não tinha milhões virava coadjuvante; aquele que tinha acesso aos cofres públicos ou aos grandes doadores virava estrela. O PT, ao governar, entendeu isso e, também, que adversários deveriam ser acalmados ou corrompidos ou neutralizados. A base aliada insaciável recebia repasses, verbas, favores, em troca de apoio. E o dinheiro? O dinheiro vinha de onde? Muitas vezes, de empresas estatais, de contratos públicos, de empréstimos que depois viravam “doações”, ou “serviços” mal prestados (https://www.camara.leg.br/noticias/74274-relatorio-do-processo-contra-o-deputado-jose-dirceu/?utm_source=chatgpt.com).

E aqui está o cerne da ironia, pois falamos de um partido que dizia “É preciso haver ética na política”, enquanto instalava (ou ajudava a instalar) um esquema em que o poder nunca foi apenas o mandato, mas o caixa. Se o mandato era uma coroa, o caixa era o cetro. E Dirceu, dentro do PT, manejou esse cetro, nem sempre com luvas limpas.

Quando se fala em financiamento público de campanha, não se trata apenas de usar dinheiro estatal transparente, como fundo eleitoral, que todos conhecemos. Trata-se de uma metamorfose: doação privada – apoio partidário – base aliada – repasse público ou estatal – continuidade do poder. E quando há R$ 52 bilhões no jogo, como foi alegado, não se trata de pequenas fraudes, trata-se de sistema. O financiamento público, num país com instituições frágeis, vira vulnerabilidade; se o Estado paga, se o partido em governo controla o Estado, se as contas não são auditadas corretamente, o financiamento vira suborno legalizado.

Para o PT, esse sistema teve duas vantagens claras: crescimento acelerado da base aliada, com o partido oferecendo recursos, cargos, em troca de apoio e domínio da máquina eleitoral. Quem controla recursos, domina discurso, apoia candidatos, filia, molda eleições. Porém, a um custo alto, porquanto o sistema escapar à transparência e ao controle. Os vícios que o partido prometia combater tornaram-se parte do modus operandi.

Dirceu, como já dito, não era mero figurante. Ele era o articulador-chefe, aquele a quem se atribui manobrar a base aliada, fazer os acordos, conduzir a lógica partidária. No relatório da Câmara: “o representado afirma que ficou responsável pelas contas partidárias (…). O deputado José Dirceu (…) durante a transição institucional de governo (…) assumiu (…) a tarefa de coordenar as articulações com partidos políticos a fim de formar uma base de sustentação para o novo governo” (https://www.camara.leg.br/noticias/74274-relatorio-do-processo-contra-o-deputado-jose-dirceu/?utm_source=chatgpt.com). Ora, se alguém “assume a tarefa de coordenar a base aliada”, não está simplesmente participando, mas definindo como o jogo será jogado. E, no escândalo do Mensalão, o Ministério Público identificou três núcleos: político‐partidário (onde Dirceu atuava), publicitário (agências que recebiam contratos públicos) e financeiro (fluxos de recursos para lavar e destinar) (https://www.camara.leg.br/noticias/94188-ministerio-publico-denuncia-envolvidos-com-mensalao/). Dirceu foi denunciado, processado e cassado por quebra de decoro. Ele, em defesa, disse que “isso não era mensalão; era caixa dois”. O tom é de quem admite parte e nega a totalidade (https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/jose-dirceu-distribui-texto-negando-existencia-do-mensalao-2w5duqwchxqmd02013zhdgs3y/?utm_source=chatgpt.com).

Imagem feita com auxílio de IA

Nós assistimos a uma reprise daquela comédia trágica, com o PT, aquele que prometeu moralizar abraçado à máquina que pretendia desmontar. Dirceu, que foi símbolo de resistência e promessa de renovação, tornou-se símbolo de que a velha política também veste vermelho, às vezes manchado.

E o financiamento público de campanha? Ah, este virou o fundo de bolso do poder. O que Dirceu disse – “um verdadeiro escândalo… R$ 52 bilhões…” – não é exagero de quem rasga seda, mas denúncia de que o sistema deixou de ser “legal, porém falho” para ser “legalizado, porém corrupto”. Porque o que é legal se suborna com auspício; o que é ilegal escapa à vista. Quando você tem dinheiro público, ou dinheiro que se torna público via reforma, você tem poder indiscreto. No final das contas, temos um espetáculo com três atos: promessa de ética e mudança (o PT, os sonhos, a esperança); a montagem da máquina de poder (financiamento, base aliada, recursos, Dirceu articulando); a revelação do espetáculo de farsas (o Mensalão, as denúncias, as contas que não fecham, os R$ bilhões que ninguém sabe de fato de onde vieram).

Está exposta a verdade incômoda: o sistema não é apenas corrupto; ele está estruturado para ser corrupto, porque enquanto o dinheiro aloca votos, a moral se esquece no camarim.

Rimos (ou deveríamos rir) com o absurdo de ver campanhas eleitorais transformadas em negócios de centenas de milhões de reais, e rimos (ou encolhemos) ao ver que aquele que pregava mudança orquestrava o concerto. Se a política fosse teatro de variedades, Dirceu seria o mestre de cerimônias que brinda com champanhe de campanha enquanto o povo paga a conta. Mas a ironia amarga é que tudo isso não está em revista ou novela, mas na vida real. E o PT, mesmo com seus méritos, ficou manchado por assumir papel de arquiteto desse sistema – ou, quando menos, de partícipe consciente. Dirceu, no centro da arena, virou personagem de tragédia grega que pinta o palco de vermelho-sangue dos recursos públicos.

Quando o financiamento de campanha vira poder que corrompe, a democracia se transforma em circo. E o palhaço, meus caros, somos nós. E que a assistência fique em silêncio, porque o espetáculo continua, e quem paga o ingresso, não esqueça, é você.

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