Por dias melhores
Quando um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) fala em “código de conduta” para seus pares, o problema já está dado antes da proposta, afinal não se trata de redigir normas, mas de reconhecer que a sensatez e a vergonha, duas virtudes não positiváveis, já não operam como freios internos. Código de conduta é remendo. E remendo só funciona onde ainda existe tecido moral.
A sugestão soa quase ingênua diante do estágio atual da nossa Suprema Corte. Como se homens e mulheres que há anos testam, esticam e por vezes ultrapassam os limites legais fossem subitamente contidos por um manual. O STF não enfrenta um déficit normativo e, sim, um colapso de autocontenção. O que falta não é regra, é constrangimento.
O comentarista político Demétrio Magnoli disse, com acuidade: “A inspiração do ministro Fachin é o código de conduta da Alemanha, mas ele é insuficiente para o caso brasileiro. Na Alemanha, as pessoas não são tão caras de pau. Não é (…) que nem no Brasil. (…) Aqui precisa desenhar. Precisa de um código de conduta que desenhe, que diga ‘Isso pode, aquilo não pode’ detalhadamente. E o princípio é simples: paguem as suas contas, ministros.”
A observação feita por Magnoli vai ao ponto com precisão cirúrgica. Inspirar-se no modelo alemão pressupõe importar também o ambiente institucional alemão, o que é impossível. Lá, códigos funcionam porque não precisam ser acionados a cada parágrafo. Aqui, ao contrário, seria necessário “desenhar”, detalhar, enumerar, quase ilustrar. O princípio seria singelo, quase doméstico, a simplicidade, no Brasil, porém, costuma ser vista como provocação.
O problema maior não está nos discursos ou nas propostas, mas no ambiente de quase amoralidade institucional que se consolidou no país, e que encontra no STF seu ponto mais sensível. A Corte que deveria zelar pela lei e pela moralidade pública passou a operar numa zona cinzenta na qual tudo é tecnicamente defensável, ainda que moralmente indigesto. Não se trata, registre-se, meus três ou quatro leitores, de imputar crimes. O que está em jogo é bem mais sofisticado: o conflito de interesses normalizado. Parentes diretos de ministros atuam como advogados em tribunais superiores, frequentam gabinetes, patrocinam causas relevantes e, curiosamente, prosperam como nunca. Escritórios que antes faturavam algo entre R$ 4 milhões e R$ 7 milhões por ano passaram, após determinadas nomeações, a operar na casa dos R$ 40 milhões a R$ 70 milhões anuais. Em alguns casos, o crescimento supera 600% em menos de uma década.
Não há prova direta de causalidade. Mas há correlação demais para ser descartada como acaso. O número de processos patrocinados por esses escritórios em instâncias superiores mais que triplica, a clientela muda de patamar, os contratos engordam. Tudo dentro da lei. Tudo fora do bom senso republicano.

Imagem feita com auxílio de IA
Montesquieu, seguindo um princípio máximo do mundo romano, já advertia que não basta que o juiz seja imparcial; é preciso que pareça imparcial. Justiça não vive só de decisões corretas, mas de confiança pública. Quando parentes diretos de árbitros constitucionais prosperam profissionalmente no mesmo tabuleiro institucional, cria-se uma sombra. E sombra, em democracia, corrói legitimidade. O alemão Max Weber chamaria isso de falência da ética da responsabilidade. O agente público deixa de perguntar “devo?” e se contenta com “posso?”. A também alemã Hannah Arendt iria além: a banalização dessas práticas transforma o inaceitável em rotina. O conflito de interesses deixa de escandalizar e passa a ser explicado em notas técnicas.
O STF, nesse contexto, tornou-se um tribunal juridicamente ativo e moralmente defensivo e indefensável. Decide muito, reage mal a críticas e confunde questionamento com ataque institucional. O que deveria ser transparência vira suscetibilidade. O que deveria ser prestação de contas vira discurso sobre ameaças abstratas à democracia. E nesse cenário, meus pouquíssimos leitores, a ideia de um código de conduta aparece quase como peça retórica, como se a formalização escrita pudesse substituir a virtude. O alemão Kant lembrava que agir moralmente é agir segundo máximas universalizáveis. A pergunta que ninguém responde é simples: e se todos os ministros tivessem parentes lucrando com a proximidade do tribunal? A resposta é óbvia – e constrangedora.
Há dias ruins e há dias piores – o Dias Toffoli. E esse dias, o Toffoli, sintetizam tudo. Quando decisões, falas públicas e gestos simbólicos se acumulam, a sensação é de que o STF já não percebe o abismo entre o poder que exerce e o pudor que deveria acompanhá-lo. A toga, que deveria impor limites, virou salvo-conduto.
O Brasil não vive ausência de normas. Vive excesso de permissividade seletiva. Uma elite institucional que aprendeu a operar no limite inferior da ética e no limite superior da legalidade. Nesse ambiente, códigos são paliativos. O que falta é algo mais antigo e mais raro: vergonha. Sem isso, qualquer manual será letra morta. E a Corte que deveria ser guardiã da Constituição continuará a precisar ser protegida de sim mesma, e não de ataques externos.
O ano novo se aproxima e desejo, já agora nesta manhã de 31 de dezembro, que todos tenhamos (não acredito que seja possível) dias melhores em 2026.