Bordel

por Sérgio Trindade foi publicado em 17.jun.25

No litoral da América do Sul havia um enclave francês – um acidente geográfico com pretensões de país. Chamava-se Bordeaux, mas não tinha vinho, nem queijos. No entanto, o que que mais lhe faltava era dignidade.

Fundada no século XVII por um francês exilado que perdera até o nome em sua terra natal, a cidade cresceu como um nódulo, inchada de expatriados decadentes e fugitivos de pequenas condenações. Os brasileiros da fronteira, realistas e espirituosos, chamavam o lugar pelo que havia se tornado: Bordel. E como ninguém corrigia, assim ficou para todos, exceto para os descendentes diretos de franceses, os quais insistiam no nome de sua pátria: Bordeaux. O nome de batismo dado pelos brasileiros colava melhor que qualquer documento da prefeitura – e Bordeaux era Bordel. No nome e nas práticas.

Bordeaux, digo, Bordel era única no mundo por duas razões. A primeira: quase todas as coisas tinham nome em português – colchão, paralelepípedo, escola, ladrão, honra. Já as pessoas ostentavam nomes franceses, embora suas almas cheirassem a sardinha velha, desvio de função e corrupção. A segunda: falava-se um português pastoso, salpicado de “r” e de “s” amassados e biquinho histérico, como se cada cidadão estivesse tentando seduzir um espelho. Um português afrancesado. Um carioquês de riviera.

Foi neste cenário que reinou, triunfal em sua própria ruína moral, Honoré Sept, sujeito cuja alma não valia o preço de uma porca espanada. Ele não era exatamente mesquinho – isso seria pouco. Ele era econômico com a própria vergonha. Comprava parafuso de segunda e vendia como refinado aço russo. Economizava até no caráter.

Honoré passava seus dias em Bordeaux como um exilado de si mesmo. Acordava tarde, vestia sua calça jeans amassada e um camiseta da Adidas de cor berrante e ia até a área da casa ligar para os amigos e desfiar seu rosário de honestidade – enquanto contava os projetos que fraudava em nome de amigos e alunos dos cursos ministrava na outrora gloriosa escola de formação, comercial, artesanal e industrial mais importante da localidade e os diários que entregava sem dar conta das aulas que registrava.

Mas quem ditava o rumo de seus dias era Nain de Feuilleton – a anã de voz esganiçada, punho de pedra e bunda negativa.

Desde que se mudaram para Bordeaux, Nain ascendera à condição de matriarca revolucionária. Fundara um movimento feminista-anarcossindicalista chamado As Pequenas Furiosas, cuja única pauta clara era o boicote a qualquer homem com mais de 1m60, mais de três neurônios e qualquer rigor moral.

Honoré estava claramente fora de risco pela altura, pela média intelectual e pelo amoralismo renitente.

Nain organizava reuniões semanais na imensa casa que dividia com o marido, atulhada de livros de pedagogia freireana. Discutiam, entre vinhos de caixa e queijos derretidos, com colegas sobre vários assuntos: o colapso da masculinidade tóxica, o preço dos absorventes, técnicas para elaboraão de projetos, metodologia de ensino revolucionário – geralmente com uma foice desenhada nos guardanapo confeccionados pela esposa de Perruche Pulcherium, dona de um shopping de aberrações.

Enquanto Nain pregava a revolução da pequena estatura, o velho amigo Perruche Pulcherium – o eterno palhaço institucional – agitava outras massas: as do subemprego.

Perruche agora se apresentava como consultor em relações públicas francófonas, o que, na prática, significava escrever releases mal diagramados elogiando candidatos a prefeitos dentudos e vereadores sebosos e eventos organizados por produtores de cabelos gordurosos e dentes mal higienizados. Era uma estrela local. Em festas de bairro, discorria em francês de posto de gasolina sobre matemáticos importantes e imitava grandes e famosos diretores escolares com o carisma de um bêbado de igreja. Em Bordeaux, isso era considerado talento político. Mas Bordeaux é Bordel – e ali Perruche foi de escravo preso a escravo livre. Preso à ignorância e livre para difundir o zero à esquerda.

Os dois (Perruche e Honoré) encontravam-se com frequência na sede de uma famosa instituição fomentadora de projetos, a qual misteriosamente promovia a patota ligada a Tartuffe, sobre quem falaremos adiante. Em bares e restanurantes, conversavam entre garfadas em queijos e generosos goles de vinho.

– A Escola tem muito a nos oferecer, Honoré – dizia Perruche, com o tom de quem vibra com o clima de bordel ali instaurado. – Nós não podemos perder a oportunidade.

Honoré fungou, cauteloso. Nain estava numa outra mesa, gritando com uma artista plástica que pintara Jesus com rímel.

– Precisamos montar algo novo – sussurrou Honoré. –  Algo discreto. Sem papelada. E com potencial para verba pública.

Foi então que entrou na conversa Hors Route, o ex-diretor que passara da preguiça institucional à diplomacia mística. Agora, vendia pacotes educacionais sob o nome pomposo de Escola Cívico-Poética dos Saberes Transversais – um lugar que ensinava absolutamente nada com uma profundidade comovente. Misticismo associado à ciências ocultas.

Hors vestia, como de hábito, camisa e calça social, e beliscava um canapé. Fez um discurso que ia de Aristóteles e Axé Music, apertou as mãos de Honoré e Perruche com a leveza de quem não lavava a própria louça há anos.

– Bordeaux é solo fértil – disse, entredentes. – Um povo carente de liderança e pronto para a tapeação ética e estética.

Foi nessa conversa pouco republicana que decidiram fazer um projeto educacional secreto, disfarçado de ONG. Batizaram de Maison du Futur: Centro de Instrução Imaginária, onde os alunos não precisavam ir, os professores não existiam e os boletins eram impressos diretamente com elogios do tipo Você é luz!.

Mas eis que surge a figura nefasta que ameaça todos os projetos bem-sucedidos da desonestidade: Tartuffe Rouge. Um militante funcionalmente analfabeto, graduado por uma faculdade cujo diploma vinha com cupom de pizza.

Tartuffe, o vermelho, era professor por título, covarde por natureza e vaidoso por hábito, era um arrremedo do que dizia ser. Caminhava por Bordeaux como quem carrega os restos de uma ideologia sem manual. Defendia tudo – desde que não precisasse explicar nada. Seu português era uma tragédia dialética, com regência duvidosa e pronúncia de quem aprendeu gramática por memes.

Nomeado para fiscalizar ONGs educativas, caiu como um torpedo de papel crepom sobre o Maison du Futur. Chegou sem avisar, com crachá torto e uma prancheta onde anotava palavras soltas: afeto, educação, inovação, partilha, tolerância. Nada disso dizia respeito ao que viu – um depósito de cadeiras quebradas, um banner com o rosto de Hors Route e uma cafeteira que só fazia chá de boldo.

– É… é uma iniciativa muito… simbólica – disse Tartuffe, franzindo os olhos como se lesse Kant num material mimeografado.

– A educação é símbolo, professor! – respondeu Hors, teatral. – Aqui ensinamos a pensar o invisível.

Tartuffe, confuso e medroso, carimbou tudo com um Aprovado com ressalvas éticas. A observação era só para inglês ver. E foi embora cantarolando uma marcha revolucionária que aprendeu vendo um stories do Sindicato.

***

Agora, o enclave de Bordeaux – ou Bordel, como preferem os vizinhos – vive sob nova direção informal. Honoré, Perruche e Hors voltaram à ativa, Nain lidera o feminismo anarcodiminuto com punhos de veludo e discurso de foice, e Tartuffe Rouge continua acreditando que está salvando o mundo – mesmo sem entender os verbos das próprias frases.

Na fachada da Maison du Futur, um letreiro cintila com a frase: “Aqui se estuda o amanhã… quando der.”

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