Como não pensar: aperte o delete e obedeça
Num país autoritário, muito autoritário, foi proibido o livre-arbítrio do espelho. O motivo: os reflexos estavam sendo acusados de subversão e atentarem contra o estado democrático de direito.
A sanha era tanta que um cidadão piscava e o guarda da esquina já anotava: “Atividade ocular não autorizada”.
Lá, todo pensamento precisava de carimbo. O sujeito só podia ter opinião se protocolasse em três vias, com firma reconhecida e assinatura digital do Ministro da Verdade, uma figura majestosa, meio imperador romano, meio síndico de condomínio, o qual passava os dias bloqueando usuários na Internet como quem troca figurinhas de álbum. Sem muito mais para fazer, o sujeito assinou uma portaria criando a campanha: Colecione cidadãos censurados. Eram 500 para completar o álbum Pátria Nacionalista e Soberana.

Imagem feita com auxílio de IA
O regime, claro, tentou criar sua própria rede social. Resultado: um aplicativo tão popular quanto fila de banco. O feed era só selfie do Companheiro Grande Líder segurando gráficos coloridos e comentários melancólicos dos ministros obrigados a curtir. “Força, chefe!”, escrevia o Ministro da Pesca. “Maravilhoso!!!!!”, digitava o Ministro da Educação, com cinco pontos de exclamação. Mesmo vez por outra soltando umas tiradas racistas, o Companheiro Grande Líder era festejado pela Ministra da Igualdade Racial: “Que símbolo da verdadeira sociedade igualitária e do combate ao racismo!”.
Para combater o “algoritmo internacional”, foram contratados jovens influencers nacionalistas e soberanos. O governo sonhava com revolucionários digitais. Recebeu, na prática, uma geração de garotos engravatados que falavam como se estivessem vendendo plano de telefonia. Viraram piada instantânea. Em menos de 24 horas, já eram remixados no TikTok ao som de forró com voz de Pato Donald. A pátria soberana queria propaganda. Ganhou pastelão.
E não pense que o regime se intimidava. Pelo contrário: declarou guerra digital contra o humor, criando a Empresa Brasileiro de Neutralização de Emoções – uma empresa de economia mista dedicada a transformar cada sorriso em um protocolo. Imagino o formulário:
- Motivo da infração: o cidadão riu de piada sobre o Grande Líder.
- Pena aplicada: 72 horas de vídeo motivacional com PowerPoint nacionalista e soberano.
Mas eis que a juventude – aquela desgraça incontrolável que dança e pensa ao mesmo tempo – continuava a desafiar o Estado. A cada decreto, uma dancinha. A cada censura, uma hashtag. O regime decretava silêncio, e o povo respondia com sticker de WhatsApp: um cachorro de óculos escuros dizendo “Chora mais, opressor”.
Na reunião de emergência, o Ministro do Controle Digital, desesperado, berrou: “Ainda tem gente pensando!”. Um silêncio de velório pairou na sala. Até que alguém sugeriu abolir a subjetividade. A proposta foi aplaudida de pé. No dia seguinte, publicaram a medida no Diário Oficial da União Patriótica e Soberana: “Pensar agora é atividade exclusiva do Estado. O cidadão comum deverá apenas concordar, sorrir discretamente e, de preferência, pagando imposto por isto”.
Só esqueceram de um detalhe: ideias são como baratas. Você mata uma, aparecem dez. E ainda voando. Cada vez que o regime deletava um vídeo, surgiam dez novos, com legendas piores, músicas piores, piadas piores. A censura virou a melhor estratégia de marketing involuntário do país.
O Grande Líder – Autoelegido e Eternamente Popular – não entendia. Ele berrava em transmissões oficiais: “É proibido pensar!”. E a Internet respondia em uníssono: “Amém, meme!”. Foi o único momento de verdadeira unanimidade nacional.
E assim segue esse país, bufando contra o impossível, querendo controlar a mente humana, sem conseguir, no entanto, controlar o grupo de família no WhatsApp. O autoritarismo se esforça, mas sempre perde para a tia que manda fake news junto com oração e foto de bolo de batata.
No fundo, a maior tragédia para a tchurma é a maior graça para nós: nenhum tirano resiste ao ridículo. O míssil assusta, mas o sticker do Chaves dizendo “Foi sem querer querendo” é imbatível. Qualquer expressão de autoritarismo treme diante do print. A pátria soberana e armada de caneta censuradora é vencida por uma figurinha.
Quem governa pelo medo acaba derrotado pela risada. Porque a risada não precisa de autorização. Só de wi-fi.
Astério de Natuba