O ensino da desordem

por Sérgio Trindade foi publicado em 05.nov.24

Professor por vocação há quase quarenta anos, estava Luiz Alves de Melo, em 2021, com sua única filha, então com dez anos, dirigindo-se à sala de professores para pegar o material e dirigir-se à sala de aula, quando encontrou-se com o diretor da instituição.

Depois dos cumprimentos de praxe, o diretor perguntou se Doriana, a filha de Luiz, iria estudar na escola. De imediato, Luiz, que, além de professor é dono de prostíbulo famoso, respondeu que não e encerrou o assunto:

– Ela só entrará aqui comigo. Nem na calçada desse lupanar ela põe os pés. Sou dono de cabaré e no meu cabaré tem ordem: ninguém põe a mão no alheio, a memória dos mortos é respeitada, pilantra não vira freguês de minhas meninas. Diferente dessa joça. Mas, veja, se minha filha insistir, paciência, estudará aqui. Farei, entretanto, o possível para que ela não faça tal escolha. Não confio nessa escola porque ela deixou de ser escola e tornou-se um prostíbulo de quinta categoria.

– Vi, em 2019, um pai andando meio distraído pelo pátio da escola e, achando-o com o olhar entre curioso e assustado, aproximei-me e perguntei se estava procurando alguém ou algum setor específico.

Disse-me que vinha de um outro estado, transferido, e seus filhos, cursando 1º e 3º ano do ensino médio, tinham direito às vagas, mas que não estava gostando do via e ouvia.

Luiz descreveu as suas impressões sobre o que o pai disse:

– O pai, morando recentemente na cidade, buscou informações sobre a escola e não lhe deram boas informações, embora muitas pessoas afirmassem que tinha excelente corpo docente e boa estrutura física. Ele queria uma escola tradicional, que desse aos filhos boa base de leitura e de conhecimento científico, sem se descuidar dos valores morais, e esperou encontrar ali o ambiente propício para que seus filhos pudessem estudar. Mas ouviu surpreso que a escola teve passado glorioso, tem presente atribulado e terá futuro incerto. Pais que um dia foram alunos ali e ex-professores falaram maravilhas do que a escola foi, mas criticavam duramente o que ela se tornou. Por isso, disse o pai, estava ali para conferir. Conversou com alunos, passando-se por funcionário do Ministério da Educação, e alguns disseram que as aulas se tornaram detalhe. Havia tempo e espaço para tudo, quase sempre subtraídos do tempo da sala de aula, havia quase ausência de limites para os alunos e os conteúdos eram prejudicados por falta de tempo de aula e por desinteresse do corpo discente, forçando os professores a replanejarem os conteúdos, tornando-os mais fáceis. O pai continuou dizendo que os seus filhos não queriam estudar na escola, porque queriam estudar. Escola sem disciplina, disse-me o pai, não funciona, e eu concordei com ele. Em quase tudo.

Para ambos, Luiz e o pai dos jovens que pretenderam fazer os estudos na escola, o que está em questão não é a vitalidade entusiasmada e entusiástica dos adolescentes, fase difícil da vida, como quem é pai/mãe ou professor/professora deve saber, mas a confusão barulhenta ou silenciosa que carregam para a sala de aula.

A atitude dos jovens, recorrendo ao pai, não é atitude moralista superior de crítica somente aos quase futuros colegas, mas uma crítica à instituição escolar, essa invenção tão antiga quanto a própria civilização, e um pedido de socorro pelo seu próprio (deles) futuro.

Os jovens expressaram o seu descontentamento com um ponto extremamente delicado para qualquer escola, não saber como administrar os comportamentos antissociais de seus alunos. O que o pai e os seus jovens filhos expuseram é tão-somente um dos grandes entraves ao trabalho dos professores: a indisciplina escolar.

Escola, professores e pais parecem estar em campos opostos. Todos acreditam que a indisciplina deva ser combatida, ainda que muitos pais briguem com a escola quando os seus pimpolhos são reprimidos por extrapolarem as regras da boa convivência, incluindo a da cobrança acadêmica. Para evitar problemas, a escola embarca na canoa furada. Os alunos adoram o desleixo, até o momento que percebem como a ignorância será um entrave para o seu futuro. Em meio ao vendaval, os professores cruzam os braços e deixam a canoa afundar.

– Só se vive em sociedade se regras básicas de convivência forem acatadas por todos. E à escola, por meio do seu quadro dirigente e do corpo docente, cabe fazer chegar aos alunos as regras praticadas no espaço escolar – e isso deve ir além da simples exposição dessas regras. Como os alunos irão transgredir as regras, pois o comportamento transgressor faz parte do processo de formação dos indivíduos, é necessário que os mecanismos de regulação se expressem. Trocando em miúdos, a escola não pode ser indulgente com os comportamentos que tornam letra-morta as regras do espaço escolar.  Os professores devem agir com coerência, estabelecendo, por meio da construção de um ambiente constante de diálogo e reflexão, os parâmetros com firmeza. À escola cabe aplicar, com justiça, as sanções adequadas aos alunos transgressores. Aos professores milagrosos, que sempre recorrem à fórmula do comigo não tem indisciplina, um conselho – não mintam. A vocês cabe um bom naco de responsabilidade pelo fato de o ambiente escolar estar se degradando.

E concluiu:

– Nada disso ocorre aqui. O meu cabaré é mais organizado. Pretendo – e vou – criar um colégio, com ensino técnico. Será, num país avacalhado como o nosso, um sucesso, com regras claras, com respeito às pessoas, aos profissionais, aos bens de todos.

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