Circo Brasilândia (1)

por Sérgio Trindade foi publicado em 15.ago.25

O Circo Brasilândia não era um circo qualquer, mas um caso de estudo para quem gosta de observar trapalhadas humanas em estado puro. A lona azul-escura, salpicada de estrelas falsas e remendada com fitas crepom, tremia ao vento como se estivesse rindo da própria sorte. O público, curioso, chegava com a expectativa de um espetáculo extraordinário, e acabava sendo testemunha de um desfile de incompetência sofisticada. Mas a fama do circo não vinha da qualidade de seus números, mas do tipo de desastre que apenas o talento de quatro pessoas poderia criar.

Iamal Bueno Delbinno da Silva era o comandante dessa nau de absurdos, embora ele preferisse se apresentar como um gestor visionário. Iamal possuía o dom da sonseria: parecia estar perdido em pensamentos filosóficos, mas, na realidade, cada suspiro vago e cada olhar distante era cuidadosamente calculado para extrair elogios alheios e evitar responsabilidades. Ele dominava a arte de parecer desentendido em qualquer situação e, assim, ninguém ousava culpá-lo quando o desastre acontecia –  porque ele sorria, acenava e dizia, como se fosse uma revelação de Shakespeare: “Ora, não entendi o que se passou, mas certamente é fascinante. E se houve erro, a responsabilidade não foi minha”.

Ao seu lado, sempre presente, Maria das Graças de Souza Delbinno. Anã, elegante, de bigode orgulhoso e vestido sempre carregado de lantejoulas que refletiam luzes imaginárias, Maria das Granas se via como a mente superior do circo. Considerava-se a responsável por elevar a arte circense à dimensão filosófica, ainda que a plateia não tivesse noção de filosofia nem da palavra estética. Citava Paulo Freire, Zabala e até Marx, geralmente fora de contexto, para justificar desde a cobrança de pipoca até o leão invisível, que, segundo ela, representava a ausência do Estado e a falência da lógica tradicional. Lia pouco e lia mal, mas lia mais do que o marido, roto e ignorante – embora sempre aparentasse ler algo. Seja lá o que for ler algo.

Maria das Graças falava com a solenidade de uma conferencista internacional e a crueldade de uma diretora de escola enfiada onde Judas perdeu as botas; tudo era didático, tudo tinha propósito, inclusive xingar os trapezistas quando tropeçavam, como se ensinasse moralidade.

O casal Delbinno formava a metade de uma laranja. Azeda. Iamal, preguiçoso e sonso, fornecia a aparência de charme desocupado; Maria das Graças, intelectualoide, administrava cada centavo e cada gesto, transformando o circo em uma máquina de fraudes artísticas e enganos refinados.

O Circo Boa Gente havia sido a versão anterior, simpática e honesta, até que a dupla decidiu que “boa gente” não dava lucro. Brasilândia, novo nome, era uma obra de marketing improvisada: um país imaginário onde a incompetência e a enrolação eram patrimônio cultural.

Imagem feita com auxílio de IA

O primeiro grande feito de Iamal foi contratar palhaços conceituais: artistas que não contavam piadas, apenas olhavam para o público e suspiravam. Três dias de apresentação e sete desmaios depois, a lona estava deserta. Maria das Graças, fiel ao seu plano de elevação cultural, criou promoções irresistíveis: “Pague dois e leve três”, sendo que o terceiro ingresso valia para um dia em que o circo sequer existia. O público, encantado com a sensação de engano honesto, começou a frequentar regularmente, tornando a falência um conceito abstrato.

Foi nesse clima de trapalhadas ordenadas que chegaram Alcário Benarico Ubuntu d’Além Campos e Ismael dos Santos Pereira. Alcário se tornou gerente da fraude. Tinha a habilidade de convencer imbecis de que perder era na verdade um triunfo filosófico. Ismael, ator de peças tão alternativas que ninguém entendia o enredo, carregava fama priápica, mas falava do assunto como quem comenta sobre o clima: natural, casual, sem constrangimento.

A recepção foi uma obra-prima da teatralidade calculada. Iamal apareceu de terno verde-água coberto de lantejoulas que refletiam cada feixe de sol, enquanto Maria, com óculos redondos estilo Sartre e vestido verde esperança, servia coxinhas frias como se fossem iguarias raras. Fotos foram tiradas, brindes distribuídos e discursos proferidos sobre o futuro artístico do circo, sem que ninguém lembrasse que, no quintal, um cachorro urinava tranquilamente na lona.

Quando os recém-chegados foram conhecer o acampamento de artistas – um amontoado de barracos inclinados onde até as pulgas pareciam deprimidas, Iamal e Maria das Graças se sentaram no camarim, trocando olhares cúmplices e sorvendo licor de jenipapo barato.

– Gostou? – perguntou Iamal, com aquele sorriso sonso de quem finge que não tem planos, mas tem todos.

– Gostei. Dois grandes salafrários – respondeu Maria, ajeitando o bigode com a delicadeza de quem afia uma lâmina. – Um deles sabe enrolar mais que corda de trapézio, e o ator é capaz de representar qualquer coisa, inclusive cheque sem fundo.

– Agora sim, Gracinha, temos o circo completo. Iamal suspirou como se fosse um poeta e não um trapaceiro. – Temos gente pra trapacear na frente e atrás das cortinas.

– E, se der errado, a culpa será deles. Maria cruzou os braços, majestosa. – Nós? Sempre sairemos como heróis incompreendidos.

Na primeira reunião criativa, a genialidade brotou como mato. Iamal propôs o número de trapezistas sem trapezistas, no qual apenas cordas balançavam ao vento e o público completava a cena com imaginação – ou medo. Maria inventou o leão invisível, alegando que o rugido vinha de uma metáfora sobre ausência e falência da lógica. Alcário sugeriu processar um cabrito que mastigara a lona, alegando que se tratava de dano moral ao patrimônio artístico. Ismael apresentou sua peça O Público que se Dane, em que atores insultavam a plateia. O ensaio terminou com Ismael perdendo dois dentes e um idoso ameaçando queimar a lona com fósforos de cera.

O cartaz da estreia prometia o maior espetáculo da Terra, ou pelo menos do bairro. Um elefante cor-de-rosa adornava a arte gráfica, embora nenhum animal real estivesse presente, exceto um pombo manco e o cabrito processado. No dia da estreia, tudo deu errado (ou certo) de forma espetacular: o microfone falhou, Iamal soou como vendedor de pamonha à distância, o palhaço tropeçou derrubando cadeiras e uma senhora, Maria caiu de um tamborete e xingou a plateia: “Ignorantes! Vocês não têm espírito circense!”. Alcário, com toda a gravidade de um acadêmico, explicou que aquilo era arte experimental. Ismael improvisou uma cena com balão, banana e interpretação de Romeu e Julieta que traumatizou três gerações de uma família.

Nos bastidores, o caos era ainda mais delicioso: Iamal devia dinheiro a todo mundo, até ao flanelinha que cuidava dos carros; Maria descobriu que Alcário recebia parte do valor dos ingressos em churros, os quais eram revendidos e os valores não eram repassados para a bilheteria; Ismael brigou com um grupo de escoteiros porque resolveu ensinar “expressão corporal” e foi expulso a tapas. Cada incidente era apresentado como uma vitória para a dupla Delbinno.

O público, claro, voltou. Voltou para rir, para cochichar, para ver até onde o absurdo podia ir. E voltava, ainda mais, porque a confusão já tinha adquirido o status de entretenimento. No camarim, Maria dos Graças recitava trechos de literatura barata, explicando a natureza humana enquanto Iamal, sonso, acenava com ar de quem entendeu tudo e nada ao mesmo tempo.

– Você percebe, Maria – disse Iamal, enchendo dois cálices de licor –, que quanto mais desastroso o espetáculo, mais fidelizado fica o público?

– Natural, meu amado, disse Maria girando os óculos sobre o nariz. – Como dizia Nietzsche, só a tragédia com estilo consegue transcender a banalidade. Ela piscou, acrescentando, como se ninguém percebesse o improviso: – Ou talvez eu tenha lido mal, mas a ideia é boa.

– Pois é, minha filósofa de bigode. Estamos cercados de talentos que só precisam de um pouco de direcionamento e muita ingenuidade alheia.

– E nós fornecemos os dois em doses generosas. Maria sorriu, satisfeita. – A humanidade é engraçada quando pensa que está no controle.

– E nós, meus amores. Iamal ergueu o copo, sonso e triunfante e exclamou: – Somos os autores dessa comédia sem limites!

Aquela noite terminou com aplausos contidos, risadas nervosas e algumas vaias disfarçadas. Nada disso importava. O que importava era que o Circo Brasilândia tinha agora todos os elementos para se tornar lendário: desastre planejado, talento duvidoso, engenhosidade criminosa e dois líderes que sabiam exatamente como manipular cada situação a seu favor.

Enquanto brindavam com licor de jenipapo, o narrador, que observava tudo como se assistisse a um teatro grego com purpurina, pensava que aquilo ainda não tinha terminado. A lona azul tremia, os bastidores cheiravam a suor e fritura e, no ar, pairava a certeza de que o Brasilândia estava apenas começando. A tragédia era o espetáculo, e a plateia, como sempre, nem desconfiava que participava da montagem mais engenhosa da história do entretenimento medíocre.

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