Contos Floridos (1)
Éramos um bloco de carnaval formado por dez homens. Apenas dez. Não dez e uma loura, não dez e uma cunhada, não dez e uma sobrinha perdida. Dez. Homens. Ponto. Um bloco mais viril que a Ilíada, só que sem Helena, sem Troia e sem guerra – exceto a guerra contra o fígado.
A maior concessão feminina era a presença de uma madrinha, uma espécie de Nossa Senhora dos Pinguços. Ela desfilava, pulava, bebia, mas não cheirava loló. Era uma tutora moral e logística, cuidava de nós como uma galinha cuida dos pintinhos – só que os pintinhos estavam sempre bêbados, cambaleantes e, às vezes, voando com ajuda de loló. Além disso, a Madrinha tinha o cargo oficial de Comissária de Menores. Uma ironia de tal grandeza que faria até Kafka desistir da literatura para vender dindim.
O bloco era heterogêneo: seis bons de copo (alguns com doutorado em uísque de procedência duvidosa), dois moderados, um abstêmio – sempre existe um estraga-prazeres, como em toda boa república – e, claro, um cachaceiro e alquimista que produzia loló em casa. Esse sujeito, se tivesse nascido na Grécia Antiga, seria lembrado como um discípulo de Aristóteles, mas ficou conhecido apenas como o fornecedor oficial da folia.
Numa prévia carnavalesca, no venerando Clube Assen, na avenida Prudente de Morais, bairro de Tirol, a cena se armou para uma grande presepada. Estavam lá o bebedores seis bons bebedores, o cachaceiro fabricante de loló e o abstêmio, esse último cumprindo o papel de testemunha sóbria, como se fosse uma espécie de notário da farra. E eis que, em meio às serpentinas, encontramos o delegado da cidade onde passaríamos o Carnaval. O homem, casado, temente a Deus, pai de família e guardião da moral e dos bons costumes, estava… com uma namorada.
Um dos nossos, que servia de caixa-preta do grupo, sacou a câmera e clicou. O resultado foi uma foto que valia mais que qualquer habeas corpus: o delegado em flagrante delito de adultério. Se Aristóteles já dizia que a virtude está no meio-termo, nosso delegado provava que a virtude estava no motel.
Um mês depois, chegamos ao Seridó. Levávamos nove garrafas de uísque vagabundo, um legítimo 12 anos para ocasiões especiais – como se fosse vinho servido na Santa Ceia – e cinco litros de loló artesanal. Era uma carreata da alegria, mas a Madrinha, como Cassandra em versão nordestina, trouxe a profecia do apocalipse:
– Meninos, cuidado. O delegado decretou que qualquer um pego com loló só sai da cadeia na quarta-feira de cinzas.
A ameaça pairou como espada de Dâmocles. Mas, como sempre, um dos nossos – o mais filósofo do grupo, que via aforismos de Nietzsche em rótulo de cerveja – retrucou com a calma dos cínicos:
– Madrinha, diga ao delegado que temos isso aqui.
E mostrou a foto comprometedora.
A Madrinha, enviada de Deus, levou o recado. Confrontado com a prova de sua queda carnal, o homem da lei capitulou. Não cedeu por inteiro, claro – continuou proibindo o loló em tese. Mas, para nós, abriu exceção. Uma espécie de contrato social nos moldes de Rousseau, só que regado a uísque barato e clorofórmio.

Imagem feita com auxílio de IA
A partir daí, os lolozeiros do bloco andavam pelas ruas como crianças com pirulito, frasco na mão, cheirando em plena luz do sol, no clube, na praça… O delegado, perplexo, chamou a Madrinha para uma audiência reservada:
– Diga aos meninos que podem cheirar, mas com mais discrição. Senão vou ser desmoralizado.
Era a moral pedindo arrego à imoralidade. Santo Agostinho teria chorado de rir.
Mas a história não para aí. Numa das noites de folia momesca, enquanto a orquestra descansava e os foliões se recompunham, o delegado, na ânsia de flagrar algum pecador sem foro privilegiado, fez ronda pela praça principal. Entre o Coreto e o Pirulito – dois monumentos arquitetônicos da principal praça da cidade – encontrou alguns do nosso bloco inteiro, agrupado como conspiradores de Shakespeare, só que cada um com o nariz mergulhado num frasco de loló, em cena digna de Dante Alighieri: um círculo do inferno onde ninguém sofria, todos gargalhavam.
O delegado respirou fundo, aproximou-se e, num lampejo de autoridade, dirigiu-se a uma jovem, assessora de deputado federal, que, por acaso, estava conosco – e disse, com toda a polidez policial:
– A senhora poderia se afastar um pouquinho?
Ela, com os ouvidos zumbindo de tanto loló, encarou-o e respondeu com a sentença que faria inveja a Sócrates diante do tribunal:
– Vá o senhor. Eu cheguei aqui primeiro.
A frase ficou gravada como epígrafe do nosso bloco. Mais do que lema carnavalesco, foi uma síntese filosófica do Brasil: a autoridade chega sempre atrasada, e o povo, mesmo atordoado, ainda encontra forças para responder.