Memórias das Putas Sérias – III
No ano de 1898, quase dez anos após a proclamação da República, a provinciana e acanhada cidade X viu chegar um monstro de ferro e fumaça.
Era a Estrada de Ferro Central do Norte, trilhos que cortavam o estado, do litoral ao sertão como faca queijo, trazendo consigo homens de chapéu de palha, engenheiros ingleses de pele muito alva e muitas promessas de progresso.
Paulo César Silveira Machado, senador de fraque e cartola e moral mais velha que as estátuas da Praça da Matriz, a ferrovia lhe trouxe um mistura de percepções e sentimentos. “O rio Pitu é o sangue dessa cidade! Mas um novo rio promete fazer maravilhas aqui. Um rio de aço”, dizia enquanto apontava para as águas que haviam feito a fortuna de sua família. E completava: “Nenhum trem vai substituir a honra de um barco, mas pode completar o que foi feito”.
Seu irmão mais novo, Epitácio Silveira Machado, discordava ligeiramente. Homem de óculos de aro fino e ideias grossas como cano de espingarda, via na ferrovia o futuro. “Enquanto você dorme com o passado, eu olho para o futuro. O trem nos fará ganhar ainda mais dinheiro!”, desafiava, acariciando os mapas da ferrovia. A sua pretensão era ligar todos os recantos do estado. Os dois irmãos, unidos pelo sobrenome e pela política, agora dividiam opiniões: de um lado, os hidreiros, fiéis ao rio e aos velhos barcos da Casa de Comércio Mandacaru; do outro, os trilheiros, que sonhavam com locomotivas apitando onde antes só se ouviam garças.
A construção começou em março. Sob sol escaldante, o qual derretia até as sombras, centenas de trabalhadores – muitos retirantes da seca e ex-escravos de mãos calejadas – abriram valas e fincaram dormentes de madeira nobre. O cheiro do carvão queimado foi aos poucos tomando conta do ar, e o rio Pitu, outrora imponente e majestoso, viu aos poucos seus barcos de carga diminuírem até quase desaparecerem. Aos domingos, os operários bebiam cachaça na Bodega do Seu Totó, um boteco de porta torta onde se apostava de tudo e em tudo, até o último tostão. Por ali a conversa era uma só: “A cidade vai ter fome de mais trilhos e de mais do que trilhos”.
Em dezembro de 1898, às vésperas do Natal, a locomotiva Maria Fumaça apitou pela primeira vez na estação de Natal. Homens, mulheres e crianças aglomeraram-se para ver aquele portento de aço cuspir brasas. Epitácio, de terno branco e sorriso de dono do mundo, discursou sobre o futuro. “Esse trem vai levar o nome de Z para o mundo!”. Paulo César, de cartola enterrada até as sobrancelhas, observava de longe, mastigando um charuto amargo. Continuava cético, mas não fechava as portas para o progresso.
Com o tempo, os barcos que vinham de Mandacaru foram se tornando uma pálida lembrança. A Estação de Trem X era a coqueluche. Passageiros e cargas chegavam e partiam de lá vindos ou indo para o interior do estado. Faltava algo, porém, para X deslanchar.
A centenas de quilômetros, no sertão baiano, Lúcia da Silva Carneiro nascera sob o signo da contradição. Feia, com buço que lhe marcava o lábio superior, era filha de vaqueiro analfabeto e de uma rezadeira carola, cresceu entre espinheiros e rezas bravas, aprendendo cedo que a vida, na caatinga, era um facão afiado: ou você corta ou é cortado. Aos 18 anos, casou-se com Antônio Aristides da Rocha Dantas, homem sério de bigode cerrado e olhar assustado, morador de São João das Cabaças, vilarejo onde as casas de taipa competiam, em números, com túmulos.
Por trinta anos, Lúcia foi Dona Lúcia Carneiro Rocha Dantas, matriarca de avental engomado e olhar duro. Teve oito filhos, cinco enterrados antes de completarem cinco anos – vítimas de várias moléstias, maltratados pela vida e pela terra ingratas. Sobraram três: Antônio Aristides da Rocha Dantas Filho, Maria do Rosário Carneiro da Rocha Dantas e José Carneiro da Rocha Dantas, o caçula.
Antônio Aristides, o primogênito, herdou o sangue frio do pai e a língua afiada da mãe. Administrava o patrimônio da família: uma fazenda de algodão e couro na divisa da Bahia com Pernambuco, onde o gado mugia de sede e os vaqueiros dormiam com o chicote na mão. Nas noites quentes, ele contabilizava lucros em cadernos de capa preta, enquanto as peles dos animais abatidos secavam.
Maria do Rosário, aos 15 anos, foi entregue a João Epaminondas de Medeiros Ataíde, filho único do coronel José Epaminondas Roque Ataíde, homem que mandava e desmandava em São João das Cabaças, com a bíblia numa mão e o revólver na outra. O casamento foi celebrado na igreja matriz. A noiva, de véu branco e coração apertado, sorriu apenas quando o coronel Epa sussurrou ao ouvido do filho: “Cuidado, mulher bonita é como cobra: ou você doma, ou ela pica”.
José Carneiro, o benjamim, foi estudar na capital. Formou-se médico em Salvador, onde montou clínica prestigiada, mas logo partiu para o Rio de Janeiro. Na corte de Dom Pedro II ganhou fama e aderiu ao republicanismo. Foi republicano de 13 de março. “O Brasil precisa sangrar as veias velhas”, discursava em jantares com barões e generais, enquanto ajustava a gravata bordada.
Dona Lúcia enviuvou cedo, aos 48 anos. O seu marido foi picado por uma cascavel numa tarde de sexta-feira santa. Não chorou, não lamentou. Descobriu que a liberdade pesava mais que o luto. Em São João das Cabaças, onde as viúvas vestiam preto até morrer, ela usava vestidos vermelhos, ria alto nas missas e dançava quadrilhas com rapazes de metade da sua idade. “Feia? Sou. Mas quente como pimenta!”, desafiava, quando os comentários chegavam aos seus ouvidos.
Até que, numa noite de São João, após beber cachaça demais e beijar um tropeiro no meio da rua, os dois filhos mais velhos a confrontaram. Antônio Aristides, de chapéu de couro na mão, suplicou: “Mãe, a senhora está nos envergonhando. Vá pra longe, pelo amor de Deus!”. Maria do Rosário, grávida do terceiro filho, chorou: “O coronel Epa diz que a senhora está manchando a nossa honra!”. José, o doutor do Rio, não morava ali e nunca quis saber do que acontecia.
Em 1895, com a República ainda engatinhando, Dona Lúcia embarcou num trem rumo ao norte. Pensava em se estabelecer em X, cidade onde ninguém sabia seu nome. Levava uma mala de couro craquelado, muito dinheiro e o desejo de viver sem rédeas.
Em X, cidade de ruas e intrigas estreitas, Dona Lúcia encontrou seu lugar. Ligou-se à família Silveira Machado, cujo chefe era Paulo César Silveira Machado, governador e depois senador. Foi ele quem lhe ofereceu um cargo de influência no governo estadual. “As mulheres votam com os maridos, mas sonham com as próprias vontades”, ensinou Lúcia, organizando comícios onde cachaça era fartamente distribuída. Nas reuniões políticas, sentava-se ao lado do governador/senador, de vestido verde-esmeralda, cutucando-o com um leque sempre que ele mentia.
Enquanto isso, em São João das Cabaças, os filhos labutavam. Antônio Aristides expandiu o império de couro, mas sonhava com a mãe toda vez que via uma mulher de vestido vermelho. Maria do Rosário, já uma matrona de olhos apagados, ensinava às filhas: “Sejam santas, mas não sejam burras”.
José, no Rio, escondia as cartas da mãe entre tratados médicos. Preferia esquecer o passado, mas o passado insistia em se fazer lembrado.
Um dia, Dona Lúcia pediu a Paulo César: “Quero abrir um negócio. Não estou aqui para ser funcionária pública, mas para empreender”.
Intrigado, o chefe político quis saber: “Que tipo de empreendimento você quer montar?”.
Sem pestanejar, a velha senhora disse com firmeza: “Um cabaré de luxo e de respeito. Sério. Exemplar. De mulheres honestas e sinceras”.