Orlando Bis e a arte do desconhecimento estratégico

por Sérgio Trindade foi publicado em 03.ago.25

Orlando Solero tinha uma filosofia de vida tão simples quanto revolucionária: tudo de bom, duas vezes; tudo de ruim, fingir que não sabia que existia.

Era um princípio que aplicava com a devoção de um monge e a cara de pau de um vira-lata em lixeira cheia. Por isso, carregava o apelido que era sua certidão de operações: Orlando Bis.

A primeira vez que Orlando furta a caneta de ouro do Dr. Alcebíades, chefe do setor de Cobranças Judiciais, é quase um acidente. “Desculpe, doutor!”, diz, devolvendo-a com um sorriso de quem achou um trevo de quatro folhas. “Achei que era minha, sabe? Caneta azul, igualzinha!”. A segunda vez, três dias depois, a caneta some dentro do bolso do camisa de Orlando enquanto o Dr. Alcebíades a procurava freneticamente. Ao ser pego em flagrante (a ponta dourada brilhando por entre os dedos engordurados de Orlando), o pilantra arregala os olhos como um bezerro vendo trem pela primeira vez:

– Mas doutor! É sua? Puxa vida! Eu… eu não sabia que pegar coisa dos outros era errado! Sério! Achava que era tipo… achados e perdidos, sabe? Uma gentileza urbana!

O Dr. Alcebíades, roxo de raiva, estava prestes a engolir o próprio bigode quando foi contido por João Nióbio, chefe da repartição. Nióbio, um ex-secretário de escola que trocara giz por apitos ao fundar a Escolinha de Futebol Estrela do Amanhã, tinha por Orlando uma admiração que beirava o patológico. Via nele um “diamante bruto”, “espírito livre”, ou talvez só um bobo útil que lavava seu carro aos domingos.

– Calma, Alcebíades! – bradou Nióbio, pomposo. – O Orlando é um ingênuo! Não tem malícia alguma. É uma alma pura! Falta ele orientação. Só isso. Vou torná-lo auxiliar técnico na escolinha. Esporte forma caráter!

Foi assim que Orlando Bis, metido a jogador, passou a “treinar” os pimpolhos da Estrela do Amanhã. Seu estilo era único: a Canelada Desorientada. A bola, para Orlando, era um inimigo pessoal. Seu chute mais famoso foi quando, tentando um simples passe, acertou em cheio o pote de vitamina da mãe do Juninho, no banco de reservas, a trinta metros de distância. O líquido laranja respingou no padre que viera benzer o campo.

– Padre, perdão! – gritou Orlando, enquanto as crianças corriam e riam. – Eu juro que não sabia que chutar era… assim! Achei que era só empurrar com amor!

Nióbio, é claro, defendeu seu pupilo:

– Espírito combativo, padre! Falta técnica, mas sobra garra!

Fora dos gramados e dos escritórios, Orlando Bis tinha seu verdadeiro império: um ônibus velho batizado carinhosamente de Gato de Schrödinger. A pintura descascava como psoríase, os assentos rangiam como alma penada e o motor tossia fumaça preta que envergonhava até locomotiva a carvão. O sócio nessa empreitada era José Quitério Sanhaçu, vulgo Manteigueiro. O apelido vinha não de gosto culinário, mas da habilidade de “passar a manteiga” em qualquer cliente desavisado. Juntos, Bis e Manteigueiro eram o Batman e Robin da picaretagem itinerante. Organizavam passeios, piqueniques, etc. Prometiam “águas cristalinas, almoço farto e diversão garantida!”. A realidade era: primeiro golpe (sempre duplo): não havia águas cristalinas, nem almoço e tampouco diversão.

Se havia reclamação do cliente (sempre dupla): “Mas isso aqui não é paradisíaco!”, berrava um pai de família. “A mortadela tá verde!”, gritava outra. Orlando Bis, de boné de aba caída posto em sua cabeçorra e óculos escuros rachados, colocava as mãos no peito, ofendido:

– Meu bom senhor! Paradisíaco é estado de espírito! Quanto à mortadela… verde? Será? Puxa vida! Eu não sabia que mortadela tinha validade! Achei que era igual presunto, só ficava melhor com o tempo! Desculpe a ignorância!

Vinha o segundo golpe: na viagem de volta, o Gato de Schrödinger misteriosamente quebrava exatamente no único lugar possível: em frente ao Posto do Seu Zé, de propriedade de… um primo do Manteigueiro. O reboque custava o olho da cara. E o lanche “cortesia” enquanto esperavam? Mortadela. Da mesma fornada. Agora com um leve tom azulado.

Os clientes saíam mais pobres, com cólica e uma raiva contida. Bis e Manteigueiro, contudo, riam até chorar, contando o dinheiro.

– Manteigueiro, boy, faturamos de novo! – dizia Orlando, abanando um maço de notas suadas. – O segredo é a repetição! E a sinceridade da ignorância!

– É isso, Bis! – concordava Manteigueiro, lustrando o dente com a língua. – Quem nunca comeu mortadela verde, que atire a primeira pedra… que a gente depois vende como souvenir!

A vida seguia nesse ritmo de samba do malandro desafinado. Orlando Bis mentia duas vezes sobre o horário de entrega de um relatório crucial. Quando confrontado com os e-mails provando a mentira, soltava seu mantra:

– Chefe Nióbio, eu não sabia que mentir era errado, assim no trabalho! Achei que era só uma estratégia comunicativa! Tipo marketing!

Nióbio suspirava, olhando para o retrato da escolinha na parede. Orlando era um problema, mas era seu problema. E quem sabe um dia ele não dava uma canelada acertada? O sonho persistia.

Até que o destino, ou talvez a lei da probabilidade aplicada a vigaristas, pregou sua peça. Nióbio, num rompante de confiança (de conivência, talvez), resolveu investir na frota da Gato de Schrödinger. Emprestou a Orlando e Manteigueiro uma grana preta para reformar o ônibus. Naturalmente, o dinheiro sumiu. Não uma, mas duas vezes. Primeiro, sumiu do cofre. Depois, sumiu da conta do banco onde Orlando “achava” que tinha depositado.

Quando Nióbio, enfim destituído de sua cegueira voluntária, encarou Orlando Bis, roxo de ódio, pronto para estrangulá-lo com o próprio apito de técnico, Orlando Solero ergueu as mãos, seus olhos brilhando com a lágrima treinada do inocente perpétuo:

– Chefe, meu pai, meu mentor, eu… eu juro por tudo que não sabia que pegar dinheiro emprestado e… sumir com ele… era errado! Achei que era só um… empréstimo sem burocracia! Um favor entre amigos! Um… investimento anônimo! Sério, chefe! Se soubesse, jamais…!

João Nióbio olhou para aquele monumento à desfaçatez, para o ônibus fumegando no pátio como um símbolo de sua ruína financeira, e para o sorriso oleoso do Manteigueiro ao fundo. Não havia ingenuidade. Havia apenas o Bis. A repetição cínica. A arte suprema de fazer errado, duas vezes, e sair por cima com um “não sabia” mais bem ensaiado que monólogo de Shakespeare.

Imagem feita com auxílio de IA

Nióbio engoliu em seco. O apito caiu de seus lábios. Não disse uma palavra. Apenas virou as costas e foi embora, derrotado não pelo golpe, mas pela pura, cristalina e duplicada cara de pau de Orlando Bis. Que, claro, no dia seguinte, já estava oferecendo Passeios Especiais para a Lagoa das Esmeraldas no ônibus reformado… com o dinheiro sumido. Afinal e ao final prevaleceu o bis? O roubo compensa.

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