Correndo na esteira do agora
Há dias em que a vida parece um rádio mal sintonizado. A gente gira o botão, passa por vozes exaltadas, anúncios urgentes, músicas interrompidas no refrão e fica com a impressão de que ouviu tudo sem escutar nada. O mundo segue falando alto, e nós seguimos respondendo mais alto ainda, como se o volume fosse sinônimo de lucidez. E não é.
Aprendi cedo, talvez tarde demais, que existem perdas silenciosas. Não fazem muito barulho nem pedem missa de sétimo dia. São perdas que se dão no varejo: um pensamento adiado, uma dúvida abandonada, uma certeza engolida sem mastigar. A pessoa não cai, apenas escorrega para dentro de si e ali fica, reagindo ao que aparece, como quem vive de susto em susto.
A modernidade nos ensinou um truque perverso, a saber, confundir informação com entendimento. Saber o que aconteceu hoje às dez da manhã virou prova de inteligência. Ter opinião formada até o meio-dia virou dever cívico. Pensar melhor ficou parecendo preguiça. Elaborar, quase um luxo. A reflexão passou a ser vista como demora suspeita, coisa de quem não acompanhou o fluxo. E o fluxo é apressado, meus três ou quatro leitores, não anda, corre em disparada. Não observa, atropela. É uma esteira rolante que exige pernas em movimento, mesmo quando a paisagem não muda. Cansa, mas não leva. Exaure, mas não aprofunda. A pessoa chega ao fim do dia com a sensação de que participou do mundo, quando na verdade só foi sacudida por ele.

Imagem feita com auxílio de IA
Nessa pressa, a opinião virou reflexo. Sai antes do pensamento, como joelho que bate ao toque do martelinho. Não dói, mas também não ensina. Opina-se porque é preciso opinar. Discorda-se porque alguém discordou antes. Concorda-se pelo cansaço de brigar. E assim vamos colecionando posições que não lembramos de ter defendido, como se fossem roupas usadas por outra pessoa.
A memória, coitada, virou artigo de luxo. Não há tempo para lembrar o que se disse semana passada, muito menos para confrontar o que se pensa hoje com o que se pensava ontem. As certezas mudam de roupa, mas o espelho permanece o mesmo: seguimos convencidos de que estamos certos e isso basta para alimentar o ego, ainda que a alma passe fome.
Esquecemos, ou fingimos esquecer, que a vida é feita de camadas. Nada nasce pronto, nada começa do zero. Os problemas que nos escandalizam têm barba branca. As disputas que nos indignam já foram travadas com outros nomes, outros discursos, outras promessas igualmente mal cumpridas. A novidade, muitas vezes, é só o figurino e a paciência não é bem-vinda nesse tempo, porquanto o algoritmo não gostar de pausa, tampouco de silêncio. Ele exige reação imediata, preferência clara, posição marcada. Não quer nuances, não tolera hesitação. Pensar devagar não gera engajamento. Dúvida não viraliza. Complexidade dá trabalho. E assim vamos formando cidadãos ligeiros e ocos. Politizados na superfície, vazios por dentro. Gente que sabe repetir palavras de ordem, mas não sabe de onde elas vieram. Que defende causas como quem troca de canal. Que confunde indignação com virtude e barulho com coragem.
Provavelmente, nos dias o silêncio atento é o maior ato de rebeldia. A recusa em reagir de imediato. O direito de não ter opinião formada sobre tudo. Pensar virou um gesto quase subversivo. Lembrar, então, é ato revolucionário. Porque viver, meus três ou quatro leitores, não é apenas responder aos estímulos do dia. Viver exige continuidade, fio, memória. Exige a coragem de ir contra a pressa e a delicadeza de admitir que não se sabe. Exige, sobretudo, tempo, artigo cada vez mais raro, que não aparece nas manchetes, mas sustenta tudo o que vale a pena.