Perdas irreparáveis
Crescer cercado de primos pode ser quase o mesmo que crescer cercado de irmãos.
Como só tive uma irmã, muito querida, eu e ela crescemos cercados de primos que foram nossos irmãos. Alguns por toda a nossa vida.
Três primos são – e continuarão sendo por toda a minha vida, e o nosso afastamento, por qualquer motivo, não apagará este sentimento que carrego – esteios. Apenas um é primo em primeiro grau: Jorge Trindade, pelo lado paterno. Dois outros o são, pelo lado materno, em segundo grau: Max Antônio de Medeiros Bezerra e Sebastião Freire Bezerra. Os três são fraternais amigos e sempre souberam disso.
Tivemos – eu e todos da família e amigos – a infelicidade de perder Max na última segunda-feira (28/02).
Passando o carnaval em Florânia, Max foi vencido por um infarto e a notícia chegou a mim por volta das 11h da manhã. Tomei um choque e, como um S. Tomé, parti para Florânia esperando que aquilo não passasse de um pesadelo. E era. No entanto, um pesadelo enraizado na realidade.
Max se foi aos 58 anos de idade.
Nascido em Currais Novos e criado em Florânia, cidade a qual amou acima de todas as outras e onde invariavelmente estava em carnavais, semana santa, festas tradicionais e feriados prolongados, foi, como bem o definiu Flávio José (ele igualmente idealista), um idealista constante e “profundo admirador das potencialidades locais”, um homem que “pensava a cidade como sendo um lugar possível para viver bem”.
Sempre defini Max para amigos e familiares como sendo amigo, sincero e leal. Acompanhando as manifestações de muitos sobre a sua partida precoce acrescentei uma outra característica: solidário. Impossível não perceber tal traço de sua personalidade (e eu a ela ceguei por toda a vida e já me desculpo pela cegueira, talvez motivada pela convivência sempre alegre e animada) ao ler o que pessoas diziam sobre ele, ao saberem de sua partida precoce. Max abriu uma trincheira e a pôs em defesa de pessoas muito humildes que a ele recorriam na instituição na qual ele trabalhou por quase quatro décadas.
As três outras características estão umbilicalmente ligadas e exprimem o que G. K. Chesterton, jornalista, ensaísta, romancista e dramaturgo inglês, dizia, a saber, que estamos “num mesmo barco, em mar encapelado, e por isso devemos ser leais uns aos outros”. Assim era Max, sincero e leal e, por isso mesmo, ótimo amigo. Não escondia quando algo o chateava e, por palavras ou gestos, expressava claramente sua insatisfação. Tive em alguns momentos, poucos, diria até que pouquíssimos, entreveros com ele e nunca deixei de admirá-lo e de amá-lo fraternalmente – e sei que a recíproca era verdadeira.
Também não nasci em Florânia, mas lá fui criado de 1967 a 1975, quando os meus pais para Natal se transferiram para que eu e minha irmã pudéssemos estudar. De nossa partida, em 1975, até a morte de meu pai, em 1983, voltei a Florânia três vezes, duas delas, em 1978 e 1982, para que eles pudessem votar nos pleitos eleitorais daqueles anos. Uma outra vez, para o velório e sepultamento de tio Paulo, pai de Max e de Manaiza, também em 1982. Só retornei a Florânia, depois daí, em 1985, por insistência de Max, já morando em Natal há três anos, que fôra fazer um recadastramento eleitoral. Dali em diante – eu, ele e (Olavo) Júnior, um outro primo – fomos presença constante na casa de nossas tias/avó Inácia e Francisca Bezerra. Íamos umas quatro vezes ao ano durante uns sete ou oito anos. Era o período final de minha adolescência e início de idade adulta e, sem medo de errar, uma das melhores fases de minha vida, quando fui consolidando a impressão, ainda tênue, que primo é apenas união de sangue, mas que amizade verdadeira entre eles os elevam à condição de irmãos.
Foi o amor devotado por Max a Florânia que me carregou de volta à cidade que eu amei na infância e que estava praticamente apagada de minha memória. Foi o amor de Max por Florânia que nos fez, a mim e a ele (e alguns amigos), organizarmos um bloco carnavalesco – Alcoolmania –, de boa história nos carnavais da cidade, entre 1987 e 1990. Foi o amor de Max por Florânia que o fazia debater com empolgação os caminhos que o município poderia trilhar para alcançar o desenvolvimento e a modernidade sem descuidar da tradição. Foi o amor de Max por Florânia que o conduzia, ao menor de sinal de folga mais prolongada, à BR 226 (antiga Estrada de Rodagem do Seridó). Era o amor de Max por Florânia que o fazia aperriar a todos de quem ele gostava a segui-lo na viagem ao Seridó para, em torno de uma mesa com bebidas e tira-gostos, ficar jogando conversa fora, rememorando fatos e, às vezes, enveredando por alguns assuntos áridos, até desgastantes, mas abordados com leveza e descontração. Minha despedida destes momentos ocorreu em 2020, também num carnaval, o último antes de a Covid nos enclausurar. Viramos uma noite, iniciada na casa de Tarcísio (irmão de Max e de Manaiza) e de Da Luz, na Serra do Cajueiro, e finalizada numa pizzaria, quase madrugada. Estávamos, então, eu, Max e Ivone, meu xará Sérgio e Manaíza. Henrique Campos, irmão de Sérgio e cunhado de Manaiza, sempre afeito à arte de nos driblar (nas peladas de futebol e nas mesas de bar), já estava recolhido. No dia seguinte, uma segunda-feira, eu que fôra apenas para o baile organizado por Socorro e Roberto Gouvêa, na sexta-feira, retornei a Natal.
À despedida simbólica de 2020 seguiu-se esta de 2022, definitiva e materializada em sua partida física. E o tempo, uma espécie de demiurgo que nos massacra, não nos permitiu, a todos que dele gostávamos, apertar-lhe a mão, abraçar-lhe e dizer-lhe que o amávamos.
Restam as ótimas lembranças (é um clichê, mas é efetivo) e também saber que Max Antônio de Medeiros Bezerra, cidadão correto e amigo exemplar, cumpriu, com sobras, a missão em vida, dentro dos preceitos que, segundo Leonardo da Vinci, deveriam nortear a vida de qualquer ser humano decente, a saber, fez o trabalho de forma eficaz e, assim, a memória dele permanecerá como uma luz acesa.
Também não custa lembrar Oscar Wilde: “O segredo mais perene do amor é que ele supera, e muito, o da morte”.